sábado, 27 de novembro de 2021

 

O que é o xinfang zhidu?

“[…] No xinfang zhidu, também chamado de sistema de cartas (xin = carta) e visitas (fang = visita), bem como de sistema de reclamações e petições, o cidadão encaminha missiva ou solicita o agendamento de audiência, endereçado (1) a membro do Partido Comunista da China e/ou (2) a órgão público especializado em receber essas petições administrativas, tais quais departamentos ou divisões de cartas e visitas (na ausência, por exemplo, em nível local, de repartições públicas específicas, o administrado se reporta a funcionários públicos cujas atribuições dizem respeito a esse mister), com a finalidade de levar ao conhecimento de hierarcas do Partido e/ou de autoridades estatais de alto escalão informações e ideias sobre matérias de interesse público, assim como opiniões, sugestões e críticas sobre a atuação do Poder Público, além de reclamações, recursos administrativos e pleitos em geral, inclusive como caixa de ressonância da insatisfação social com Governos Populares Locais e com a corrupção e a ineficiência na seara do Poder Judiciário (FANG, 2013, p. 1; LO, 2015, p. 120; MATSUZAWA, 2015, p. 82; WAYE; XIONG, 2015, p. 11, 24, 33; WANG, 2015d, p. 155; WONG, 2015, p. 239).

Consiste em meio de pacificação social, contrapeso às limitações do regime autoritário, por meio do qual os Governos Populares e o Partido Comunista da China estabelecem canais diretos de comunicação com a população, com o fim (1) de reforçar a confiança no Estado chinês e na ideologia socialista difundida pelo PCC, (2) de atenuar o déficit de participação popular nos processos decisórios estatais, (3) de mitigar, de forma pontual e momentânea, as restrições à liberdade de expressão e (4) de aproximar, autoridades estatais e partidárias, dos diversos segmentos da sociedade, ao conhecerem e, em determinadas situações, atenderem demandas individuais e coletivas, salvaguardando direitos (à revelia, por vezes, das formalidades do due process of law), informando-se, ao mesmo tempo, (5) acerca de relevantes questões de interesse público, como também (6) da performance de agentes públicos de baixo escalão e de autoridades locais (MINZNER, 2015, p. 117-118, 135-136).

Atualmente, como reflexo da tentativa do Estado chinês de aproximar o sistema de cartas e visitas do formalismo próprio do devido processo legal, o regulamento do xinfang zhidu consubstancia-se no Decreto n. 431, baixado em 10 de janeiro de 2004, pelo Conselho de Estado da RPC, cuja entrada em vigência ocorreu em 1º de maio de 2005 (CHINA, 2015e).

O Decreto n. 431/2004 mantém a vocação do xinfang zhidu de alta capilaridade na máquina estatal e na sociedade chinesa, porquanto o serviço de cartas e visitas deve (1) abarcar todos os níveis de Governos Populares (arts. 1º a 5º, 7º e 9º), (2) estender-se a organizações sociais, a sociedades empresárias e a instituições situadas fora da estrutura dos Poderes de Estado (art. 49), notadamente quando se trata de reclamações quanto ao desempenho de agentes e entidades do setor público ou, ainda, de agentes e entidades do setor privado que prestam serviços públicos, atuam em matéria de interesse público ou são controlados pelo Estado (art. 14), e (3) ter como destinatários (leia-se: autores de cartas e visitantes) cidadãos da RPC, estrangeiros, apátridas, pessoas jurídicas e demais organizações […], inclusive estrangeiras (arts. 2º e 50) (CHINA, 2015e).

No contexto peculiar do sistema de cartas e visitas, o Decreto n. 431/2004, permite, em seu art. 2º, que a manifestação do administrado materialize-se por intermédio de informações, comentários, sugestões e reclamações, transmitidas via correspondência (convencional), correio eletrônico (e-mail), fac-símile (fax), telefonemas e visitas, entre outros (cuida-se de elenco exemplificativo) (CHINA, 2015e).

Em geral, de acordo com o art. 17 do Decreto n. 431/2004, os meios de comunicação são em formato escrito, a exemplo de correspondência (convencional), e-mail e fax, e, em caso de reclamações (em regra, escritas, mas passíveis de serem verbais, reduzidas a termo pelo órgão competente, em caso de apresentação oral, efetuada mediante visita, pelo interessado, ao serviço de cartas e visita, em vez do envio de correspondência ou da protocolização de peça escrita), devem contemplar (mesmo as reclamações verbais, transcritas posteriormente) requisitos formais atinentes (1) à explicitação do nome do interessado e do seu endereço (equivalente, na práxis processual brasileira, à qualificação do peticionário), assim como (2) dos seus pedidos, além (3) dos fatos e dos motivos em que se baseia (na prática forense brasileira, estes últimos requisitos correspondem, em essência, às razões de fato e de direito ínsitas à causa de pedir da petição inicial) (CHINA, 2015e).

Conforme se infere do art. 16 do Decreto n. 431/2004, os Governos Populares situados no nível distrital ou de condado (3º nível de unidades administrativas) ou acima (1º e 2º níveis de unidades administrativas, de âmbitos provincial e prefeitural, respectivamente) deverão contar com departamentos administrativos de cartas e visitas (CHINA, 2015e).

É possível, ainda, na forma do art. 16 do Decreto n. 431/2004, que os Governos Populares situados no nível distrital ou de condado ou nos dois níveis acima, bem como os Governos Populares do nível de cantão ou cidade (4º nível de unidades administrativas) […] designem equipes (unidades de atendimento) ou agentes públicos especializados no serviço de cartas e visitas, os quais poderão fazer visitas ao local de moradia do peticionário (art. 12), a fim de ter contato presencial com o interessado e intercambiar com ele ideias a respeito do objeto do expediente administrativo (CHINA, 2015e).

O sistema recursal, aos olhos dos arts. 34 a 35 do Decreto n. 431/2004, traduz-se no direito público subjetivo de que a decisão adotada pelo órgão administrativo competente (incumbido de apreciar a matéria objeto do requerimento ou de outro expediente da lavra do interessado, encaminhado ao órgão decisório pelo serviço de cartas e visitas) seja impugnada, no prazo de 30 (trinta) dias, por intermédio de recurso administrativo revestido da natureza jurídica de recurso hierárquico, pois que dirigido à autoridade imediatamente superior, a qual, se não prover tal remédio processual, ensejará eventual protocolização, no igual prazo de 30 (trinta) dias, de novo recurso hierárquico, direcionada, por sua vez, à autoridade imediatamente superior ao julgador do recurso hierárquico […].

A apreciação do expediente administrativo, pela instância decisória de origem, deve ocorrer em 60 (sessenta) dias, prorrogáveis, em casos complexos, pelo prazo inexcedível de 30 (trinta) dias (art. 33 do Decreto n. 431/2004). Os eventuais julgamentos do recurso hierárquico e da revisão administrativa cingem-se ao prazo mais exíguo de 30 (trinta) dias (arts. 34 e 35 do Decreto n. 431/2004). A revisão administrativa comporta, no entanto, a realização de audiências, destituída de prazo normativo certo (art. 35 do Decreto n. 431/2004). Uma vez indeferido o pedido de revisão administrativa, não serão conhecidas, pelo sistema de cartas e visitas, novas petições que, relativas àquele caso concreto, continuem a ecoar a mesma irresignação do autor (art. 35 do Decreto n. 431/2004) (CHINA, 2015e).

Tradição imperial chinesa adaptada ao maoísmo na primeira metade da década de 1950 […], na qualidade de ferramenta de governança espraiada por todos os níveis de governo e todos os órgãos administrativos, legislativos e judiciários da RPC, o sistema de cartas e visitas, ao plasmar, em caráter extraoficial, meio alternativo de impugnação de atos do Poder Público, não só mantém sua vitalidade nos dias atuais, mas também experimenta o assoberbamento de demandas […], diante da insatisfação popular e de conflitos sociais crescentes (CAVALIERI, 2015, p. 4; HUMAN RIGHTS WATCH, 2015, p. 8; LO, 2015, p. 120; MINZNER, 2015, p. 110-120; WANG, 2015d, p. 155; WAYE; XIONG, 2015, p. 11, 24, 33; XIE, 2015, p. 24-25; ZHANG, 2015c, p. 4).

Desse modo, apesar da aparente similitude com as ouvidoras dos órgãos públicos e entidades estatais brasileiras, o xinfang zhidu, em realidade, exprime, no mundo fático, para além da moldura formal delineada pelos seus marcos regulamentares, verdadeira via oblíqua de ataque a atos estatais em geral, sejam administrativos, sejam judiciais (em particular, decisões judiciais relacionadas a matérias administrativas e, sobretudo, cíveis), em decorrência da conjunção dos seguintes fatores (CAVALIERI, 2015, p. 4; MATSUZAWA, 2015, p. 82; MINZNER, 2015, p. 125-126; PEERENBOOM, 2002, p. 9, 12, 17; WANG, 2015d, p. 155; WAYE; XIONG, 2015, p. 11, 24, 33; XIE, 2015, p. 25-26; ZHANG, 2015c, p. 4-8, 28, 64):

  1. O excesso de poder (em sentido amplo […]) fomentado pelo arcabouço regulatório e pela práxis, (a) ao proporcionarem aos órgãos de cartas e visitas dos Governos Populares a compleição típica de esferas de controle da Administração Pública e do Poder Judiciário dotadas de potestade decisória, convolando aqueles Governos, de maneira informal ou por força de regulamentos (por exemplo, atos regulatórios locais da década de 1990), em instâncias revisoras de atos administrativos e decisões judiciais, ou (b) expandindo, no âmbito local, o espectro de intervenção do Poder Judiciário, ao lhe conferirem atribuições coincidentes com competências próprias da Administração Pública […].
  2. A baixa credibilidade dos órgãos judiciais e administrativos, devido à formação técnica deficiente de seus quadros e à percepção popular de que se encontram contaminados de corrupção (conjuntura agravada pela falta quer de remédios judiciais eficazes, quer de imparcialidade e independência do Poder Judiciário), somada à crença (refutada, sob o prisma estatístico) de que o sistema de cartas e visitas é o mais eficiente na resolução de conflitos […].
  3. A tendência comportamental de parcela do povo chinês se valer do xinfang zhidu como estratégia para burlar formalidades e balizas processuais dos sistemas administrativo e judiciário.
  4. A visão popular de que o sistema de cartas e visitas reveste-se de menor formalismo que outras instâncias estatais decisórias (administrativas e judiciais), conjugada com a afinidade da sociedade chinesa com meios alternativos de resolução de conflito, porque imbuídos de aparência paternalista […] e conciliatória (ou de menor carga contenciosa), em prol do ideal da harmonia social […] (a mediação, no sistema de cartas e visitas, é divisada pelo art. 14 do Decreto n. 431/2004 […]).

Em que pese o xinfang zhidu figurar como escoadouro da frustração popular com a Administração Pública e o Poder Judiciário chineses, a maioria dos expedientes não é respondida, silêncio administrativo que serve de ensejo a protestos coletivos e a reações violentas (MATSUZAWA, 2015, p. 82). […]”

Leia o artigo completo: Facetas do direito administrativo chinês: a reforma de 2014 da lei do processo administrativo ― a justiça administrativa de segurança pública ― o sistema de cartas e visitas.

Como citar a referência bibliográfica: FROTA, Hidemberg Alves da. Facetas do direito administrativo chinês: a reforma de 2014 da lei do processo administrativo ― a justiça administrativa de segurança pública ― o sistema de cartas e visitas. Revista Digital De Direito Administrativo, Ribeirão Preto, v. 3, n. 1, p. 184-216, jan.-jun. 2016.

Nenhum comentário:

Postar um comentário