sábado, 27 de novembro de 2021

 

Caso Simelane: considerações finais

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[…] Conquanto a diferença entre os testes da racionalidade e da razoabilidade divisada por Yacoob não seja uma distinção ontológica e sim uma opção pragmática de política judiciária (distingue, na tessitura do Direito Público sul-africano, entre as revisões judiciais dos atos político-governamentais e dos atos administrativos em sentido estrito, em profilaxia contra eventuais críticas de violação à separação de poderes e de demasiado ativismo judicial), mostra-se inquestionável que todos os atos dos Poderes de Estado e da Administração Pública devem contemplar coeficiente mínimo de racionalidade (exigência a abranger não só o ato decisório propriamente dito, mas também o seu método de formulação e as formalidades a que se vincula, no seio das funções estatais normativa, jurisdicional, político-governamental e administrativa stricto sensu), passível de controle pelo Poder Judiciário, na qualidade de requisito indispensável de legitimidade, de constitucionalidade e de juridicidade dos atos estatais, incluindo-se os atos de teor político-governamental, sob pena de se anuir com a existência de categoria de provimentos estatais de cunho político-governamental que, infensos à interveniência judicial, tornar-se-iam portos seguros de arbitrariedades cristalizadas e insindicáveis[1], o que denotaria indireta chancela à irresponsabilidade de agentes políticos, incompatível com a sociedade e o regime democráticos e com a sujeição de todos ao (e a igualdade de todos perante o) ordenamento jurídico, sobretudo em se tratando de condutas estatais de índole política e governamental, em relação às quais há maior potencial de ressonância em bens, matérias, interesses e princípios caros à manutenção do Estado de Direito e à estabilidade político-socioeconômica, bem assim à salvaguarda da moralidade pública e à efetividade dos direitos fundamentais.

Na ordem constitucional brasileira, (1) enquanto “idoneidade e reputação ilibada” são alguns dos requisitos para a nomeação de Ministros do Tribunal de Contas da União (art. 73, § 1º, inciso II, da CF/88), (2) “idoneidade moral” é um dos requisitos para a nomeação dos 2 (dois) Ministros do Tribunal Superior Eleitoral (art. 119, inciso II, da CF/88) e dos 2 (dois) juízes dos Tribunais Regionais Eleitorais pertencentes à carreira da advocacia (art. 120, § 1º, inciso  III, da CF/88), ao passo que (3) “reputação ilibada” é um dos requisitos para a nomeação dos membros dos Tribunais Regionais Federais e dos Tribunais de Justiça dos Estados-membros e do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios (art. 94, caput, da CF/88) recrutados dos quadros do Ministério Público e da advocacia, bem como da totalidade dos integrantes do Supremo Tribunal Federal (art. 101, caputin fine, da CF/88) e do Superior Tribunal de Justiça (art. 104, parágrafo único, da CF/88[2]), a par dos Ministros civis do Superior Tribunal Militar egressos da advocacia (art. 123, parágrafo único, inciso I, da CF/88), da parcela de membros do Conselho Nacional de Justiça e do Conselho Nacional do Ministério Público indicada pela Câmara dos Deputados e pelo Senado Federal (art. 103-B, inciso XIII, e art. 130-A, inciso VI, respectivamente, da CF/88[3]) e do Advogado-Geral da União (art. 131, § 1º, da CF/88).

O procedimento de nomeação de tais agentes públicos, a fim de que seja meio apropriado, ou seja, para que mantenha conexão racional com o fim de interesse público[4] de que seus titulares sejam autoridades munidas de “idoneidade e reputação ilibada”, “idoneidade moral” ou “reputação ilibada” (reverberação do princípio da moralidade[5]), deve encerrar processo decisório e decisão principal e final respaldados em motivação clara, explícita e congruente[6] acerca de eventuais notícias (levadas ao conhecimento da autoridade incumbida de expedir o ato decisório principal e final) de fatos relevantes que tenham, em tese, o condão de descaracterizar a idoneidade (notadamente moral) e/ou reputação ilibada do candidato cogitado, a título de coeficiente mínimo de racionalidade inafastável dos atos estatais.

Extrapolando-se os horizontes do caso Simelane, o abrangente campo de incidência do princípio constitucional da moralidade (art. 37, caput, da CF/88)[7] impõe cogitar-se a extensão do controle de racionalidade dos atos nomeatórios de cunho político-governamental mesmo aos cargos públicos de provimento em comissão reputados de livre nomeação e exoneração (nomeadamente, cargos-chave na formulação de políticas públicas, como os de Ministros de Estado[8], Secretários de Estado, Secretários Municipais e Secretários Distritais), em relação aos quais, ainda que a legislação de regência não preveja, de forma expressa e prévia, regras que contenham requisitos atinentes à integridade moral, cumpre à autoridade nomeante, por força da interconexão entre princípios da moralidade, da juridicidade-legalidade, da impessoalidade, da finalidade, da publicidade-transparência-motivação e da supremacia e indisponibilidade do interesse público, posicionar-se, lastreada em motivação clara, explícita e congruente, a respeito de notícias de condutas (atribuídas à pessoa natural em via de ser nomeada) inconciliáveis com a moralidade pública (incluindo-se a moralidade administrativa), a exemplo de agentes políticos implicados em investigações rumorosas (de conhecimento público e notório pela coletividade) de crimes contra a Administração Pública e o Sistema Financeiro Nacional, assim como de crimes eleitorais, de infrações penais praticadas por organizações criminosas e de delitos de ocultação de bens, direitos e valores, franqueando-se à pessoa cogitada para o cargo comissionado correspondente a oportunidade, em etapa antecedente à decisão principal e final acerca da sua nomeação, de prestar esclarecimentos e de apresentar elementos probatórios, sujeitos à apreciação motivada e isenta da autoridade competente, em homenagem aos princípios da não culpabilidade (art. 5º, inciso LVII, da CF/88) e da presunção de inocência (art. 8º, § 2º, da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, o Pacto de San José da Costa Rica, de 22 de setembro de 1969[9]), como também do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa (art. 5º, incisos LIV e LV, da CF/88), já que eventual juízo de valor conclusivo, em sentido desfavorável, pela autoridade incumbida de nomeá-la e por órgãos de controle que oficiaram no procedimento de nomeação, tem o potencial de repercutir, de maneira negativa e significativa, independente de acarretar dano indenizável ou não, quer sobre a incolumidade moral, em especial a honra e a imagem do indivíduo considerado para tal cargo em comissão, quer sobre a sua carreira, o seu projeto de vida e a sua psique.

O procedimento de promoção por merecimento de membros do Poder Judiciário e do Ministério Público (art. 93, inciso II[10], e art. 129, § 4º, da CF/88), ainda que inclua etapa em que há o julgamento por órgão colegiado, no qual são proferidos votos que expressam juízo de valor untado de dose de subjetividade, deve (1) considerar fatores relevantes (tais quais critérios objetivos de produtividade e presteza no exercício do múnus público e pela frequência e aproveitamento em cursos oficiais ou reconhecidos de aperfeiçoamento, assim como antecedentes disciplinares e a atuação do membro no seio da comunidade, em atividades de promoção da cidadania), (2) evitar dar peso excessivo a fatores de menor relevância (como o número de atos de mero expediente aviados pelo candidato, bem assim a realização de cursos de pós-graduação, stricto sensu ou lato sensu, ou de formação complementar desprovidos de nexo de pertinência direto com as atribuições funcionais do candidato) e (3) desconsiderar fatores irrelevantes à aferição do mérito funcional (ilustrados pelas convicções do candidato sobre problemáticas políticas, socioeconômicas e religiosas, pela sua orientação afetivo-sexual, sexo, gênero, etnia, cor de pele, Município ou Estado de origem ou estado civil, grau de parentesco ou nível de amizade com ilustres e/ou influentes integrantes da comunidade jurídica e da sociedade local).

O requisito mínimo de racionalidade (combinado com o critério das considerações relevantes, que lhe é inerente) açambarca os atos de nomeações identificados, pela dogmática administrativista brasileira, seja como atos simples, seja como atos complexos, seja como atos compostos, ou, em classificação alternativa, denominados de atos simples (singulares ou colegiais) e complexos[11].

O Governo e a Administração Pública, ao adotarem atos decisórios e procedimentos visando ao fomento ou ao alcance de determinada finalidade de interesse geral da sociedade, devem (1) calibrar seus provimentos, com motivação clara, explícita e congruente, à luz de fatores relevantes associados a outros interesses legítimos e lícitos, de cunho estatal e não estatal, público e privado (inclusive de âmbito social e/ou econômico), difuso, coletivo e individual (mormente se passíveis de serem afetados de forma negativa), e, ao mesmo tempo, (2) abster-se de lançar mão de meios contrários ao ordenamento jurídico, ao Direito Legislado, à moralidade pública (inclusive administrativa), à racionalidade, à razoabilidade, à eficiência, à eficácia e à economicidade.

[1] Na dogmática publicista brasileira, Maria Paula Dallari Bucci preleciona que a prática dos atos de governo deve atender tanto o “dever de legalidade, em seu escopo procedimental”, quanto o “dever de motivação, que se impõe à generalidade dos atos praticados no exercício do Poder Público” (BUCCI, 2013, p. 61). Em face da supremacia da Constituição, Derly Barreto e Silva Filho advoga a possibilidade jurídica de controle de constitucionalidade, pelo Poder Judiciário, dos atos parlamentares de economia interna (interna corporis), perquirindo-se, inclusive, a constitucionalidade de normas regimentais em que aqueles se amparam (SILVA FILHO, 2003, p. 184-188).

[2] Redação do art. 104 da CF/88 alterada pelo art. 2º da Emenda Constitucional n. 45, de 30 de dezembro de 2004, a Emenda da Reforma do Poder Judiciário.

[3] Os arts. 103-B e art. 130-A, ambos da CF/88, foram acrescentados à CF/88 pela precitada EC 45/2004.

[4] Em tal contextura, interesse público ressoa “os interesses da coletividade como um todo” (BANDEIRA DE MELLO, 2014, p. 73).

[5] Art. 37, caput, da CF/88.

[6] Os requisitos da “motivação clara, explícita e congruente”, positivados no art. 50, § 1º, da Lei n. 9.784, de 29 de janeiro de 1999, a Lei do Processo Administrativo Federal, ecoam norma geral imanente à Teoria Geral do Direito Público, reflexo dos princípios da publicidade, sob a óptica da transparência (MARRARA, 2012, p. 288-290, 299), e da legalidade em sentido amplo (ou juridicidade), sob o ângulo da racionalidade (PRICE, 2015, p. 10), a ser, em regra, observada pela Administração Pública e pelos Poderes de Estado brasileiros, máxime no que se refere a atos estatais imantados de carga decisória.

[7] Em tal contextura, encara-se a moralidade sob o enfoque da probidade: “Impõe que o agente público exerça a função pública no desejo de apenas concretizar os interesses públicos primários. O Estado não deve ser utilizado como mecanismo para a realização de interesses meramente particulares do agente público, político ou não. Além disso, nem mesmo deve o agente público fingir perseguir interesses públicos para, na verdade, obter benefícios individuais indevidos.” (MARRARA, 2016, p. 110, grifo do autor)

[8] O Ministro Gilmar Mendes, em ambas as decisões monocráticas de 18 de março de 2016 (MS 34070 MC/DF e MS 34071 MC/DF), vinculou o ato de nomeação de Ministro de Estado ao princípio constitucional da moralidade, na qualidade de ato administrativo: “O princípio da moralidade pauta qualquer ato administrativo, inclusive a nomeação de Ministro de Estado, de maneira a impedir que sejam conspurcados os predicados da honestidade, da probidade e da boa-fé no trato da ‘res publica’.” (BRASIL, 2016a; BRASIL, 2016b)

[9] Promulgada, na ordem jurídica brasileira, pelo Decreto Presidencial n. 678, de 6 de novembro de 1992 (BRASIL, 2015).

[10] O teor do art. 93 da CF/88 foi modificado pelo art. 1º da apontada EC 45/2004.

[11] Assim Zanella Di Pietro diferencia os atos simples, complexos e compostos: “Atos simples são os que decorrem de declaração de vontade de um único órgão, seja ele singular ou colegiado. Exemplo: a nomeação pelo Presidente da República; a deliberação de um Conselho. […] Enquanto no ato complexo fundem-se vontades para praticar um ato só, no ato composto, praticam-se dois atos, um principal e outro acessório; este último pode ser pressuposto ou complementar daquele. Exemplo: a nomeação do Procurador Geral da República depende da prévia aprovação pelo Senado (art. 128, § 1º, da Constituição; a nomeação é o ato principal, sendo a aprovação prévia o ato acessório.” (DI PIETRO, 2015, p. 268, grifo original suprimido, grifo nosso em itálico) José dos Santos Carvalho Filho consigna que tal exemplo dado por Di Pietro (no tocante à nomeação do PGR), em realidade, é ilustrativo de espécie de ato complexo (à semelhança dos atos de nomeação dos Ministros do Supremo Tribunal Federal), e não de ato composto. Acentua que, nas vontades que integram os atos compostos, apenas uma tem autonomia (somente uma vontade possui conteúdo próprio), de maneira que as demais vontades detêm tão só caráter instrumental, limitadas “à verificação de legitimidade do ato de conteúdo próprio” (CARVALHO FILHO, 2014, p. 132). Bandeira de Mello preleciona classificação diversa, dividindo-os em atos simples (“produzidos pela declaração jurídica de um único órgão”) e compostos (“resultam da conjugação de vontade de órgãos diferentes”), bifurcando aqueles em atos simples singulares (“a vontade expressada no ato provém de uma só autoridade”) e em atos simples colegiais (defluem “do concurso de várias vontades unificadas de um mesmo órgão no exercício de uma mesma função jurídica e cujo resultado final substancia-se na declaração do órgão colegial”) (BANDEIRA DE MELLO, 2012, p. 431-432). […]

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Leia o artigo completo: O caso Simelane: o controle judicial dos atos de nomeação expedidos pelo Chefe do Poder Executivo, à luz do critério das considerações relevantes e do princípio da racionalidade.

Como citar a referência bibliográfica: FROTA, Hidemberg Alves da. O caso Simelane: o controle judicial dos atos de nomeação expedidos pelo Chefe do Poder Executivo, à luz do critério das considerações relevantes e do princípio da racionalidade. Revista Digital de Direito Administrativo, Ribeirão Preto (SP), v. 3, n. 2, p. 296-330, jul.-dez. 2016.

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