sábado, 27 de novembro de 2021

 

A razoabilidade anglo-saxônica se aproxima da proporcionalidade germânica? Rui Barbosa nos ajuda a elucidar essa questão!


Rui Barbosa

[…] Essa formulação de origem germânica do critério da necessidade se aproxima, em essência, do conteúdo do princípio da razoabilidade extraído por Rui Barbosa da jurisprudência dos Estados Unidos e do Reino Unido do século XIX e início do século XX, ao defender a possibilidade de que seja regular e justificável a interdição ilimitada e prevista em contrato da liberdade de comércio ou de indústria, quando unicamente de cunho temporal, ou quando unicamente de caráter espacial, considerando irrazoável (não razoável, sem razão ou irracional[1]) a interdição perpétua e universal de jaez temporal e, ao mesmo tempo, espacial[2] (§§ 278, 279, 282 e 284):

[…] No sistema a que chamaríamos continental, por ser o predominante entre as nações do continente europeu, se estabeleceu um critério definido e seguro para a declaração da validade ou nulidade nessas convenções, anulando-se absolutamente as que encerrarem uma interdição de liberdade comercial ou industrial, ilimitada quanto ao território e quanto à durabilidade. O magistrado não pode aceitar como subsistente a proibição, posta ao cedente, de reexercer, no comércio ou na indústria, certo gênero de atividades, senão quando essa proibição tiver limites de lugar ou tempo. […]

[…] pode-se discutir sobre a subsistência ou insubsistência da interdição, quando ela for ilimitada quanto ao tempo ou quanto ao lugar; mas a sua nulidade é inquestionável, se a estipulação for ilimitada quanto ao lugar e quanto ao tempo. […]

[…] Em última análise, não se trata senão de reunir numa só palavra a dupla ausência de limites quanto à duração e ao território nas obrigações desta natureza. É unreasonable a interdição, porque irrestrita quanto ao tempo e ao espaço. […][3]

Com o fito de robustecer seu entendimento, abeberou-se — rememora-se — em precedentes britânicos e estadunidenses[4] (§§ 278 a 300).

Colheu (§279) da obra de Edmund H. T. Snell intitulada “The Principles of Equity: intended for the use of students and of practitioners” (à época reeditada por Archibald Brown e publicada em Londres pela Editora Stevens & Haynes)[5] precedentes da jurisprudência inglesa a reconhecerem a nulidade de “contratos de interdição geral de um comércio”[6], salvo se “a interdição, sendo limitada, como a de não exercer alguém certo comércio em determinado lugar ou por tempo razoável[7]. Posto de outro modo: a teor dessa corrente de pensamento, afigura-se válido contrato de interdição de comércio, “se bem que ilimitado quanto ao espaço [Nordenfelt v. Maxim Co., Limited, 1894, A. C. 535[8]], ou, até, quando ilimitado quanto ao tempo [Haynes v. Doman, 1899, 2 Ch. 13[9]], supondo-se sempre que seja razoável nas circunstâncias de um e outro caso”[10].

No entanto, o jurista baiano pondera (§ 280) que o critério adotado à época na Inglaterra (primeira metade da década de 1910) deixava de ser meramente de cunho temporal e/ou espacial, à medida que se disseminava naquela jurisprudência o parâmetro da razoabilidade (conjugado com a análise da abrangência territorial da proibição ao exercício do comércio):

Não há negar, porém, que, ultimamente, em Inglaterra, o critério dominante nesta apreciação não está nem no tempo nem no espaço, mas na reasonableness, na razoabilidade, ou não razoabilidade, que a interdição convencionada apresentar. “A pedra de toque, a que primeiro há de recorrer o tribunal, é a da razoabilidade (reasonableness), e, para solver a questão da responsabilidade, é que terá de apreciar a extensão territorial abrangida na interdição.” (Americ. and Engl. Encyclop. of Law, v. XXIV, p. 845, not. 6, in fine, e p. 850, n.º 4, in fine.) […]

[…] Como se vê, em última análise, a questão da razoabilidade se resolve, afinal, justamente na do tempo e espaço, que limitam a interdição[11]

Nesse contexto, para se aquilatar se determinada interdição na liberdade comercial de âmbito territorial e temporal seria razoável, Rui Barbosa traz a lume (§§ 280 e 285) baliza pretoriana que muito recorda o princípio parcial da necessidade ou da exigibilidade de matriz alemã (a necessidade, na abordagem alemã — lembra Afonso da Silva — verifica se dado “ato estatal que limita um direito fundamental é somente necessário caso a realização do objetivo perseguido não possa ser promovida, com a mesma intensidade, por meio de outro ato que limite, em menor medida, o direito fundamental atingido”[12]) quanto à proibição de excesso (no sentido de que — alumia Paulo Bonavides — “a medida não há de exceder os limites indispensáveis à conservação do fim legítimo que se almeja”[13]):

Os tribunais (diz Wharton Beall na sua monografia sobre a Restraint of Trade) têm adotado todos a regra estabelecida, no caso Horner v. Graves, pelo juiz Tindal. Essa regra consiste em se verificar se a interdição não vai além do necessário para assegurar proteção razoável aos interesses da parte, a favor de quem se estipulou, sem contrariar os do público em geral: “Wether the restraint is such only to afford a fair protection to the interest of the party in favor of whom it is given, and not so large as to interfere with the interests of the public.” (Am. and Engl. Encycl. of Law, codem loco.)

Se a interdição exceder os limites da proteção devida ao cessionário, não pode trazer legítima vantagem a ele nem ao público: será, então, meramente opressiva, e, sendo opressiva, aos olhos da lei não é razoável. “Whatever restraint is larger than the necessary protection of the party can bem of no benefit to either; it can only be oppressive; and, if oppresive, it is in the eye of the law, unreasonable.” (Ib., p. 850-51.) (1) […]

[…] Basta, pois, que não seja razoável, isto é, basta que seja excessiva a extensão do território abarcada na interdição de comerciar, para que o contrato incorra na taxa de não razoável, e, como tal, se haja por vão, caduco, inexistente.[14]

Destarte, Rui Barbosa invoca, sob a rubrica da razoabilidade, traço característico ao critério da necessidade de raiz alemã, isto é, a vedação ao exercício de direito além do indispensável à adequada proteção do interesse do titular do direito.

Em que pese tenha se abeberado na construção jurisprudencial anglo-saxônica em torno do princípio da razoabilidade, Rui Barbosa, fiel à mentalidade jurídica de sua época, ressalva (§ 282) que não se poderia no ordenamento jurídico brasileiro, filiado ao sistema romano-germânico, “confiar aos tribunais o arbítrio de validarem ou anularem contratos, em que forem interessadas liberdades como a do comércio e a da indústria, deixando-os à sua apreciação discricionária, sob um critério absolutamente opinativo”[15] — continua — “como o de serem, ou não, razoáveis esses contratos, seria uma transplantação desastrosa”[16].

Em similar sentido, também como reflexo da visão jurídica da primeira metade do século XX, Miguel Seabra Fagundes repudiara a aplicação, no Brasil e inspirada na experiência forense do Estados Unidos, do controle judicial da razoabilidade dos atos administrativos:

O território jurídico da apreciação da legalidade é muito restrito, em nada podendo obstar a ação eficiente das comissões, desde que contida na órbita legal. Só nas hipóteses de incompetência, desvio de finalidade etc. é que o Judiciário as poderia conter, porém aí, como é claro, em defesa da ordem jurídica.

É descabido, em desabono do que dizemos, o exemplo norte-americano. Nos Estados Unidos, como já tivemos ocasião de observar, o juiz, analisando a razoabilidade dos atos administrativos, exerce jurisdição plena e não de simples legalidade, penetra no mérito do procedimento da Administração, vincula-a ao seu critério administrativo. Aqui nunca se deu nem se pode dar tal ingerência, que entre os americanos decorre da cláusula do due process of law.[17]

Entretanto, da alvorada desses estudos pioneiros de Rui Barbosa e Miguel Seabra Fagundes até os dias hodiernos, o cenário judicial brasileiro se alterou de forma significativa. Hoje já não se discute a possibilidade jurídica do nosso Poder Judiciário aplicar o princípio da razoabilidade, e sim se a jurisprudência do órgão de cúpula da Justiça pátria, de fato, vale-se do princípio da proporcionalidade ou se adstringe a realizar “um apelo à razoabilidade”[18], de modo que a pesquisa de Rui Barbosa sobre a razoabilidade se insere em uma questão jurídica em voga no Direito brasileiro, que é, justamente, a análise comparativa entre os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade e o exame da interação entre as dimensões da razoabilidade e da proporcionalidade.

Obras Completas de Rui Barbosa

[1] BARBOSA, Rui. Obras completas de Rui Barbosa: as cessões de clientela e a interdição de concorrência nas alienações de estabelecimentos comerciais e industriais. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Saúde, 1948, v. 40, t. 1, p. 276, 278, 284. Disponível em: http://www.casaruibarbosa.gov.br/rbonline/obrasCompletas.htm. Acesso em: 20 abr. 2011.

[2] Ibid., p. 276.

[3] Ibid., p. 279, 282, grifo de Rui Barbosa, transcrição adaptada à nova ortografia do português brasileiro.

[4] Ibid., p. 275-293.

[5] SNELL, Edmund H. T. The Principles of Equity: intended for the use of students and of practitioners. 16th ed. London: Stevens & Haynes, 1912, p. 420. Disponível em: http://www.archive.org/download/cu31924021656222/cu31924021656222.pdf. Acesso em: 9 mai. 2011.

[6] Ibid., p. 276, tradução e grifo de Rui Barbosa.

[7] Ibid., loc. cit., tradução e grifo de Rui Barbosa.

[8] SNELL, Edmund H. T. Op. cit., loc. cit.

[9] Ibid., loc. cit.

[10] BARBOSA, Rui. Op. cit., loc. cit., tradução de Rui Barbosa e grifo nosso.

[11] Ibid., p. 277-278, tradução e grifo de Rui Barbosa, transcrição adaptada à nova ortografia do português brasileiro.

[12] AFONSO DA SILVA, Luís Virgílio. O proporcional e o razoável. Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 91, n. 798, abr. 2002, p. 38.

[13] BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 19. ed. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 397, grifo nosso.

[14] BARBOSA, Rui. Op. cit., p. 277-278, 283, tradução de Rui Barbosa, grifos nossos e de Rui Barbosa, transcrição adaptada à nova ortografia do português brasileiro.

[15] Ibid., p. 280.

[16] Ibid., loc. cit., grifo do autor, transcrição adaptada à nova ortografia do português brasileiro.

[17] FAGUNDES, Miguel Seabra. Da proteção do indivíduo contra o ato administrativo ilegal ou injusto. Arquivos do Ministério da Justiça e Negócios Interiores, Rio de Janeiro, v. 5, n. 18, jun. 1946, p. 21, grifo do autor.

[18] AFONSO DA SILVA, Luís Virgílio. O proporcional e o razoável. In: TORRENS, Haradja Leite; ALCOFORADO, Mario Sawatani Guedes (Org.). A expansão do direito: estudos de direito constitucional e filosofia do direito em homenagem a Willis Santiago Guerra Filho (por duas décadas de docência e pesquisas). Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004. p. 113. […]

Leia o artigo completo: O proporcional e o razoável: a contribuição pioneira de Rui Barbosa ao estudo do critério da necessidade e do princípio da razoabilidade.

Como citar a referência bibliográfica: FROTA, Hidemberg Alves da. O proporcional e o razoável: a contribuição pioneira de Rui Barbosa ao estudo do critério da necessidade e do princípio da razoabilidade. Revista Iberoamericana de Derecho Público y Administrativo, San José, v. 12, n. 12, p. 429-448, ene.-dic. 2012.

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