Conexão racional e proporcionalidade
"[…] 3.4 Conexão racional e proporcionalidade
A doutrina judicial hard look (“hard look doctrine”), igualmente denominada de revisão judicial hard look (“hard look review”), é empregada, na atualidade, como sinônimo do controle judicial da ação administrativa arbitrária e caprichosa (“arbitrary and capricious review”), relativa ao regime jurídico da Administrative Procedure Act – APA (a Lei do Processo Administrativo Federal dos Estados Unidos, vigente desde 11 de junho de 1946), construção pretoriana cujo embrião nasceu do até hoje existente critério jurisprudencial da conexão racional (“rational connection”), que remonta à jurisprudência norte-americana pretérita à APA, prevalecente no decorrer das suas duas primeiras décadas de vigência (anos 1940 e 1950), período em que o controle judicial das agências circunscrevia-se à aferição da presença de um mínimo nexo de plausibilidade entre o propósito permitido pela ordem jurídica (“permissible goal”) e os meios escolhidos para se atingir tal fim (HARVARD LAW REVIEW, 2015, p. 1.910-1.915; VIRELLI III, 2015, p. 722-733, 758-760)[1].
A concepção de Yacoob do teste da racionalidade assemelha-se também às plurívocas expressões dos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade.
Ao examinarem os julgados das Cortes Constitucionais da Coreia do Sul e de Taiwan relacionados à revisão judicial da ação administrativa, por meio do princípio da proporcionalidade, Cheng-Yi Huang e David S. Law ressaltam que uma parcela de tais acórdãos de ambos os Tribunais Constitucionais adscreve-se a lançar mão, a título de controle de racionalidade, de uma versão do teste da adequação de aspecto rudimentar (“rough equivalent of rational basis scrutiny”), no caso sul-coreano, ou, no caso taiwanês, vago (“loose version of the test that considers merely whether the law in question is arbitrary or lacks a rational connection with the legislative purpose”) (HUANG; LAW, 2015, p. 14, 20-21, grifo nosso).
No Brasil, Valeschka e Silva Braga, ao dissertar sobre a concepção tripartite do princípio da proporcionalidade (dividida em adequação ou idoneidade, necessidade ou exigibilidade e proporcionalidade em sentido estrito), de matriz alemã, preconiza, no âmbito da adequação, seja perquirida a presença de “uma causalidade real e racional entre o meio e o fim”, para que se verifique se foram “observadas as condições físicas e lógicas para a inquirição da compatibilidade” (BRAGA, 2008, p. 112, grifo nosso).
Em Portugal, Jorge Miranda, adepto da tripartição do princípio da proporcionalidade em necessidade, adequação e proporcionalidade em sentido estrito (ordem diversa, dessarte, da usual sequência adequação, necessidade e proporcionalidade stricto sensu), insere no subprincípio da adequação a “correspondência de meios a fins”, mas nomina de “racionalidade ou proporcionalidade stricto sensu” o terceiro subprincípio, enxergando-o como a expressão da “justa medida”, (1) a implicar a “correta avaliação da providência em termos quantitativos (e não só qualitativos)”[2] e (2) a significar, ainda, não ficar aquém nem além “do que importa para se obter o resultado devido” (MIRANDA, 2000, p. 207, grifo do autor).
Na Itália, Marcello Clarich vislumbra essa concepção tridimensional do princípio da proporcionalidade de raiz germânica como uma particularidade ou especificação (“una specificazione”) do princípio da razoabilidade (“principio di ragionevolezza”), de feição mais genérica (“ancora più generale”) e origem pré-jurídica (“di natura in realtà pregiuridica”). Para o administrativista peninsular, o princípio da razoabilidade deriva da teoria da escolha racional (“teoria delle scelte razionali”), segundo a qual a Administração Pública (à semelhança dos agentes econômicos) é capaz “de perseguir determinados objetivos”, ao encetar ações lógicas, coerentes e funcionais (CLARICH, 2013, p. 154-155).
No Canadá, a Suprema Corte, no acórdão-paradigma do caso R. v. Oakes[3], ao interpretar a Carta de Direitos e Liberdades canadense[4], delineou, no § 70 daquele aresto, formulação tridimensional do princípio da proporcionalidade na qual, a título de primeiro teste, averígua-se se “as medidas adotadas foram cuidadosamente concebidas para se atingir o objetivo em questão”, tendo-se em perspectiva o mister de que haja “conexão racional com o objetivo”, vedando-se aquelas “arbitrárias, injustas ou baseadas em considerações irracionais” (CANADÁ, 2015b, grifo nosso; ENDICOTT, 2015, p. 96; FOLEY, 2015, p. 74-75). A proporcionalidade trina, tal como ventilada no caso R. v. Oakes, foi invocada pela Suprema Corte da Irlanda no igualmente paradigmático julgamento de Heaney v. Ireland[5] (FOLEY, 2015, p. 74-75).
Em Israel, Aharon Barak, no controle de constitucionalidade da legislação infraconstitucional, decompõe, de modo quadripartite, o princípio da proporcionalidade, nos testes (1) da finalidade adequada (“proper purpose”), (2) da conexão racional (“rational connection”), (3) da necessidade (“necessity”) e (4) da proporcionalidade em sentido estrito (“proportionality stricto sensu) ou balanceamento (“balancing”) (BARAK, 2012, p. 245-378).
A conexão racional, na visão do ex-Chief Justice da Suprema Corte israelense, concerne à congruência entre a restrição a direitos constitucionais imposta pela legislação[6] e a finalidade a que visa o respectivo ato normativo, a fim de que as limitações normativas ao exercício de direitos constitucionais configurem meios racionais, para que se aumente a probabilidade de alcance ou de fomento do propósito normativo subjacente (“[…] can realize or advance the underlying purpose of that law”; that the use of such means would rationally lead to the realization of the law´s purpose” […] “that the means chosen be pertinent to the realization of the purpose in the sense that the limiting law increases the likelihood of realizing its purpose”) (BARAK, 2012, p. 303).
O constitucionalista indiano Madhav Khosla estampa a mesma divisão tetrapartite de Barak do teste da proporcionalidade, posicionando no segundo subteste o questionamento relativo à “conexão racional entre a medida e o seu desiderato” (KHOSLA, 2015, p. 299, grifo nosso).
No Reino Unido, o princípio da proporcionalidade, no regime jurídico da Lei de Direitos Humanos[7], também adquire fisionomia quadripartite, em que, no segundo questionamento, indaga-se se as medidas estatais projetadas para se atender dado objetivo legislativo encontram-se “racionalmente conectadas a ele” (WADE; FORSYTH, 2014, p. 307, grifo nosso).
[1] Segundo Peter Cane, a revisão judicial, com espeque na abordagem norte-americana da doutrina judicial hard look, concita os administradores públicos a comprovarem que consideraram todas as relevantes evidências disponíveis e que a decisão administrativa adotada foi, de acordo com tais evidências, um meio racional de alcançar os objetivos que nortearam, na situação examinada, o exercício da discricionariedade administrativa: “Hard-look review requires administrators to show that they have considered all relevant available evidence and that the decision made is, in the light of that evidence, a rational way of achieving the objectives of the discretion.” (CANE, 2011, p. 174, grifo nosso)
[2] Citação adaptada ao português brasileiro.
[3] Numeração oficial: R v. Oakes [1986] 1 SCR 103 (CANADÁ, 2015b).
[4] Mais conhecido como Canadian Charter of Rights and Freedoms ou La Charte canadienne des droits et libertés, corporificado na Lei Constitucional de 1982 (CANADÁ, 2015a).
[5] Numeração oficial: [1994] 3 I.R. 593 (FOLEY, 2015, p. 74).
[6] Em tal conjuntura (BARAK, 2012, p. 303-304), o vocábulo law compreende o conjunto da legislação: não apenas as leis formais (statutes), como também os demais atos estatais normativos, tais quais os regulamentos.
[7] Mais conhecido como Human Rights Act 1998 (REINO UNIDO, 2015). […]"
Leia o artigo completo: O caso Simelane: o controle judicial dos atos de nomeação expedidos pelo Chefe do Poder Executivo, à luz do critério das considerações relevantes e do princípio da racionalidade.
Como citar a referência bibliográfica: FROTA, Hidemberg Alves da. O caso Simelane: o controle judicial dos atos de nomeação expedidos pelo Chefe do Poder Executivo, à luz do critério das considerações relevantes e do princípio da racionalidade. Revista Digital de Direito Administrativo, Ribeirão Preto (SP), v. 3, n. 2, p. 296-330, jul.-dez. 2016.
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