“[...] As bases ontológicas dos direitos
existenciais dizem respeito ao movimento de o existente humano, de modo
incessante, antecipar a si mesmo, ao projetar campos de sentido que lhe
facultam ser a si mesmo por meio do seu poder-ser. Os direitos existenciais,
como expressões jurídicas do existir, vicejam na facticidade, haja vista que os
direitos existenciais não são direitos preestabelecidos, proporcionados a
priori, de forma espontânea, à revelia da historicidade, dados pelas forças
da natureza, mas decorrem de possibilidades que surgem em determinado mundo
fático sedimentado de que o ordenamento jurídico configura desdobramento,
inclusive o Direito Constitucional Positivo e os tratados do Direito
Internacional dos Direitos Humanos. Os direitos existenciais, sendo direitos
ínsitos ao existir e ao movimento existencial de cada um, eclodem ante a
interface entre a existência e a facticidade, em meio a articulações e
rearticulações históricas das possibilidades fáticas que se apresentam no
mundo, com ressonância na ordem jurídica em geral. Os direitos existenciais se constituíram
e se constituem no mundo fático sedimentado, como construções históricas dos
existentes humanos e das suas coletividades que se positivaram e se positivam no
ordenamento jurídico. São repercussões jurídico-normativas da experiência
humana nos horizontes históricos sedimentados a partir dos quais o existente
humano realiza decisões do pensamento que lhe fazem sentido. Os direitos
existenciais são emanações jurídico-normativas dentro da historicidade (e não
fora dela, nem antes ou depois dela), e o seu exercício, por sua vez,
concretiza, no mundo fático sedimentado, o poder-ser-no-mundo em determinada
tessitura histórico-epocal.
Os direitos existenciais não são direitos
inerentes à natureza humana, mas à existência do ser-no-mundo, porque o
existente humano, pensado em termos ontológicos, não possui natureza, tampouco
consiste em um ente subsistente por si mesmo, uma vez que o existente humano se
encontra, ontologicamente, desprovido de qualquer essência formada por
propriedades quiditativas que tenham sido dadas e constituídas de maneira
prévia. Os direitos existenciais são direitos que, com assento no Direito
Positivo, reverberam no ordenamento jurídico a fenomenologização, no seio da
historicidade, da existência do ser do homem. Os direitos existenciais estão
conectados com o poder-ser-no-mundo. Entretanto, esse poder-ser pode assumir
caráter não só próprio como também impróprio. O poder-ser, seja próprio, seja
impróprio, assim como a esfera do impessoal, encontram-se destituídos quer de
valorações morais, quer de conotação antropológica. Próprio e impróprio, nesse
contexto, não constituem juízos de valor de cunho imediato. O poder-ser próprio
não é um modo de ser moralmente autêntico. O poder-ser impróprio, a seu turno,
não é um modo de ser moralmente inautêntico.
Os direitos existenciais, imbricados com o
projeto de ser e a dimensão da decisão, são desdobramentos do campo
existencial. Os direitos existenciais se constroem na concretude da existência,
por força do caráter ekstático dela, de sorte que o existente humano é jogado,
em uma irrupção de modo abrupto e imediato, no mundo fático sedimentado, que é
o seu próprio mundo, em meio às possibilidades existenciárias (possibilidades
fáticas de ser) inerentes a esse mundo. No âmago dos direitos existenciais
encontra-se o direito de o existente humano, ao se projetar no campo
existencial, dar vazão a possibilidades de ser, à proporção que identifica
essas possibilidades que, imanentes à vida fática, fazem sentido para si mesmo.
Ao se divisar o dano existencial, composto pelos danos ao projeto de vida e à
vida de relação, e ao se situarem, na seara dos direitos existenciais, os
direitos relacionados com a liberdade como possibilidade para a possibilidade,
inclusive os direitos à diversidade e à rearticulação existenciais, à retomada
da existência, ao cuidado e de desfazer laços de ilusão, evoca-se, de forma
subjacente, o direito existencial a possibilidades de ser na vida fática.
Os direitos existenciais são expressões
jurídico-normativas da experiência humana, na facticidade, como pura
performance. São incompatíveis com os direitos existenciais estruturas de
opressão que, por intermédio do ordenamento jurídico, de maneira explícita ou
implícita, reduzam a parcela da humanidade a usufruir do estatuto jurídico de
humanos ao contingente que contempla normas jurídicas de reconhecimento da
natureza humana, positivadas em prejuízo de minorias e grupos vulneráveis, e,
ao mesmo tempo, em benefício de grupos sociais que exercem o domínio do poder
por meio quer das searas política (inclusive geopolítica), militar, religiosa,
cultural, educacional, acadêmica, intelectual, científico-tecnológica,
econômica e social, quer dos campos da informação e da comunicação, quer da
esfera da vida privada, quer dos âmbitos da moralidade social ou comum e da
normatividade jurídica. À luz dessa perspectiva, os direitos existenciais se desdobram
no direito à diversidade existencial, como direito de emancipação da matriz da
colonialidade, seja das minorias e dos grupos vulneráveis, seja dos povos do
Sul (incluindo-se os do Sul Geopolítico), seja da humanidade em geral, da vida
planetária e do mundo natural, para que, mediante a ruptura com estruturas de
opressão, outros modos de ser na vida fática possam ser visibilizados e
viabilizados, libertos de relações marcadas pela lógica da conquista, da
exploração e da subjugação de seres vivos humanos e não humanos, da humanidade
e da natureza.
A efetividade dos direitos existenciais
quer das minorias e dos grupos vulneráveis, quer dos povos do Sul, quer dos
oprimidos em geral pela matriz da colonialidade, poderá ser fomentada, no mundo
fático sedimentado, por meio do acolhimento ao constitucionalismo
transformador. Mostra-se relevante pensar os direitos existenciais
aproximando-se os pensamentos fenomenológico e decolonial do constitucionalismo
transformador, porquanto os direitos existenciais daqueles subalternizados por
estruturas de opressão apenas serão, de fato, respeitados se houver uma
mobilização coletiva, tanto da sociedade civil (inclusive das comunidades
universitária e jurídica, bem assim dos movimentos populares, das entidades
classistas, das agremiações políticas, das organizações religiosas e do
Terceiro Setor), quanto da institucionalidade brasileira, a serviço da
sociedade civil, inclusive por intermédio dos Poderes de Estado, da
Administração Pública e de órgãos públicos que, mesmo não sendo Poderes de
Estado, possuem nível elevado de autonomia de estatura constitucional
(Tribunais de Contas, Ministério Público e Defensoria Pública), com a
finalidade de que sejam modificadas quer as relações de poder, quer as
instituições de âmbito político e social, em prol de uma sociedade mais
igualitária, democrática e participativa, em que haja transformações sociais em
larga escala, ao influxo de processos políticos não violentos com esteio no
ordenamento jurídico. Promover a igualdade substancial, nessa contextura,
significa abraçar uma visão mais ampla da igualdade de condições, com o
desiderato de que as políticas públicas sejam direcionadas não apenas (a)
a propiciar tanto o mínimo vital quanto o mínimo existencial, mas também (b)
à redução, de modo maciço, das principais desigualdades, com a sua subsequente
e efetiva eliminação. Assegurar o desenvolvimento nacional (artigo 3.º, inciso
II, da CF/88) implica, necessariamente, o fomento à igualdade substancial e à
solidariedade social (interpretação conjunta dos artigos 3.º, inciso I, e 5.º, caput,
da CF/88), em prol do bem de todos (artigo 3.º, inciso IV, da CF/88) e do
primado da dignidade da pessoa humana (artigo 1.º, inciso III, da CF/88), com
atenção prioritária aos direitos existenciais das minorias e dos grupos
vulneráveis, a exemplo das mulheres negras e dos homens negros, os quais, assim
como os povos originários, têm sido os mais expostos a contextos de pobreza,
marginalização, desigualdade social e regionais a que se reporta o inciso III
do artigo 3.º da Constituição Federal de 1988.
É indispensável o combate efetivo a
ressonâncias centenárias das colonialidades do ser, do saber e do poder relacionadas
com estruturas de opressão que, normalizadas, normatizadas e naturalizadas,
fizeram e fazem com que vidas colonizadas fossem e sejam reduzidas ao lugar da
não-existência e de ser-menos, em um processo de desfenomenologização no bojo
do qual, invisibilizadas, nega-se-lhes a condição de seres humanos. A promoção
dos direitos existenciais, pela adesão ao constitucionalismo transformador,
mormente pelos povos do Sul, significa fomentar o giro decolonial, inclusive por
intermédio da função jurisdicional constitucional, com o intuito de que sejam
criadas possibilidades de existir e coexistir fora da colonialidade, pela
transformação existencial (modificação de modos de ser), conjugada com a
transformação social, pela sociedade civil, coadjuvada pela sistemática e
efetiva atuação, em seus respectivos âmbitos de atribuição, dos Poderes de
Estado, dos Tribunais de Contas, da Administração Pública, do Ministério
Público, da Advocacia, da Advocacia Pública, da Defensoria Pública e da
institucionalidade brasileira de forma geral, na prevenção, repressão e
eliminação de todos os modos diretos e indiretos de se retroalimentarem
estruturas de opressão, tais quais aquelas atinentes aos racismos estrutural e
sistêmico, assegurando-se aos oprimidos e oprimidas e aos colonizados e
colonizadas novos campos de possibilidades fáticas de ser no mundo. Mediante o
giro decolonial, impulsionado pela interconexão entre os direitos existenciais
e o constitucionalismo transformador, galvaniza-se o processo de reexistência
das vidas colonizadas e oprimidas, de sorte que elas passem a ser, cada vez
mais, visibilizadas e viabilizadas, (a) ao se desconstruírem os
(não-)lugares em que viceja a dicotomia visíveis e invisíveis, e (b) ao
se semearem, na seara da facticidade, possibilidades de ser não coloniais,
libertando-se da colonialidade existências e coletividades por ela oprimidas.
[...]”
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Como citar este artigo acadêmico:
FROTA, H. A. da. Os direitos existenciais:
leituras fenomenológicas e decoloniais em diálogo com o constitucionalismo
transformador. Revista Jurídica UNIGRAN, Dourados, v. 27, n. 53, p.
55-88, jan.-jun. 2025. Disponível em: https://www.unigran.br/revistas/juridica.
Acesso em: 29 jul. 2025.