sexta-feira, 21 de fevereiro de 2025

Os direitos existenciais: diálogos com a Psicologia Existencial de bases kierkegaardianas

          “[...] os direitos existenciais agasalham a faculdade de o indivíduo, ao experienciar o desconforto e a insuficiência, ao estranhar, ao se assombrar e ao se inquietar, avaliar a experiência e a posição nas quais se insere, para que possa enfrentar a realidade e retomar a sua existência, assim como a sua liberdade e mobilidade. [...]

                                                                                [...]

Os direitos existenciais relacionam-se com o direito de que todos sejam respeitados como singulares, tendo em mira “a singularidade que somos nas contingências da vida” (Protasio, 2017, p. 108), à proporção que, na vida concreta, o eu passa a se criar, a transparecer a si mesmo e aos demais o seu modo de existir, a se assumir perante a si mesmo, a família e a sociedade, a “decidir” por si próprio. O indivíduo confere contornos singulares ao seu existir oriundos desse movimento de assenhorar-se da tutela da própria existência. [...]

[...]

[...] Nessa ordem de ideias, nos direitos existenciais reside o direito de o indivíduo se haver com a própria existência, considerando os atravessamentos do contexto situativo em que ele é posicionado, na medida em que decide se acolhe ou rejeita o si mesmo a ele dado, sem que, contudo, possa fugir ou escapar de si próprio (Vieira; Feijoo; Protasio, 2024).  

[...]

No imo dos direitos existenciais assenta-se o direito à liberdade de existir na concretude em que se manifesta a vida. Significa dizer: pertence à esfera dos direitos existenciais o direito de cada indivíduo à tutela da sua própria existência (Feijoo et al., 2013). [...] Assim, nos direitos existenciais, abriga-se a faculdade de o humano contemplar a sua própria existência, para que tenha o direito de “encontrar, na tessitura de sua existência, a sua medida” (Magnan; Feijoo, 2020, p. 104), o que implica ter o direito de abrir-se para campo de possíveis a extrapolar a seara das possibilidades “sedimentadas no nosso horizonte histórico” (Magnan; Feijoo, 2020, p. 105), ainda que venha a divergir do que seria a medida da sua existência incensada, por exemplo, pelos referenciais extraídos da vida em sociedade, em comunidade e em família.

[...]

Na esfera do direito existencial ao cuidado de si mesmo inclui-se o direito de “dar um passo atrás das referências postas pelos modelos normativos e moralizantes que se impõem em um determinado horizonte histórico” (Feijoo, 2017, p. 141-142), consubstanciados nas verdades, pressupostos, saberes e consensos de dada época, normatizados por meio de instâncias de poder, como as de cunho médico, jurídico e sacerdotal, as quais, entre outras, posicionam o modo como cada um deve proceder em deferência aos ditames da saúde, da ordem e da paz de certo horizonte histórico e, em consequência, afastam, de modo recorrente, o indivíduo da medida que ele “pode conquistar no âmbito do próprio existir” (Feijoo, 2017, p. 142). Não se trata de refutar a relevância do conhecimento médico-científico, nem de olvidar o valor da segurança jurídica, tampouco de deslegitimar a religiosidade, e sim de ponderar, em uma atitude filosófica, em que medida saberes, valores, referências ou referenciais que se normatizam e se tornam instrumentos de poder podem assumir caráter opressivo, ao delimitarem e definirem modos de existir. São emblemáticas as situações em que os poderes médico, jurídico e religioso, entre outros, foram conjugados e instrumentalizados para o fomento à eugenia, ao racismo estrutural, ao colonialismo, à violência de gênero e à repressão a identidades de gênero e orientações sexuais diversas do modelo cisheteronormativo. 

[...]

Nesse caminhar, nota-se que, nos direitos existenciais, arrima-se o direito à diversidade existencial, amparando-se a faculdade de o indivíduo opor-se a caminhos únicos nos planos estético e ético.

[...]

O direito à diversidade existencial é o direito de liberdade que lhe franqueia, na (re)descoberta da sua própria gama de valores, critérios e referenciais, no movimento de resgate e preservação de si próprio, pelo exercício da paciência, distender seus horizontes e cogitar modos diversos de existir e possibilidades de escolha distintas daquelas que são alçadas ao patamar de mandamentos sociais, a fim de que não mais seja subalternizado pelo impessoal, ou seja, para que não mais seja mero caudatário dos usos, costumes e modismos, bem como das demandas e expectativas alheias, tais quais aquelas promanadas dos campos social, profissional e familiar. A interface entre o direito ao cuidado de si mesmo, o direito à singularidade, o direito à rearticulação e ao direito à diversidade existenciais permite ao indivíduo reservar-se ao direito de desfazer laços de ilusão, de enfrentar dúvidas e dilemas até então paralisantes e reencontrar a si mesmo, nesse pacientar, em que questiona e não mais adere, por automatismo, a padrões sociais de felicidade, bem-estar, beleza estética, produtividade, alta performance, prosperidade material e usufruto de bens de consumo (Feijoo; Protasio, 2023).

Em outras palavras, na esfera dos direitos existenciais, acolhe-se o direito de o indivíduo desfazer os seus próprios laços de ilusão, de optar por não mais estar perdido em meios às solicitações, demandas e exigências do mundo, próprias da sociedade de massa, em que a verdade passa a ser o que se difunde e anuncia pela publicidade (Feijoo, 2017), ou seja, aquilo que é divulgado ao público e para o público se torna a expressão da verdade. É o direito existencial de não ser mero reprodutor das prescrições da sociedade em geral e de re(descobrir) os seus próprios “critérios, referenciais e valores” (Feijoo, 2008, p. 311). Trata-se do direito existencial de sair da paralisia das dúvidas e de recobrar a autonomia para decidir e escolher, abandonando a postura passiva de quem, imerso na multidão, encoberto no (e camuflado pelo) impessoal, segue os rumos ditados pelo geral (Feijoo, 2008), isto é, pelos meios de comunicação, pelas redes sociais, pelos algoritmos, pelas plataformas de inteligência artificial, pelas ideologias e doutrinas em voga, pelos usos e costumes, pelas agências de propaganda, pela máquina de publicidade, pela moda, pelos modismos e pelas invencionices. Cuida-se, também, do direito existencial de não mais justificar o seu agir nessa aderência subalternizada ao exterior (Feijoo, 2008).”

 

Leia o inteiro teor deste paper aqui.

 

Como citar este artigo acadêmico:

 

FROTA, H. A. da. Os direitos existenciais: doutrina, jurisprudência e leituras kierkegaardianas. Revista Jurídica UNIGRAN, Dourados (MS), v. 26, n. 52, p. 25-54, jul.-dez. 2024. Disponível em: https://www.unigran.br/dourados/revistas/juridica. Acesso em: 21 fev. 2025.

 

quinta-feira, 30 de janeiro de 2025

Os dilemas e as encruzilhadas do Direito Administrativo Global

 “1 Kingsbury propõe que a norma de reconhecimento de Hart, na esfera do Direito Administrativo Global, seja adaptada a tonalidades publicísticas harmônicas — depreende-se — com o interesse geral da humanidade, inclusive no tocante à crescente demanda popular por transparência. Almeja a construção de Direito Administrativo Global norteado por prática normativa comum abraçada pela consciência dos povos como obrigatória e ínsita à práxis e à Principiologia de Direito Público nacional, transnacional e internacional.

2 Mitchell e Farnik preconizam que os princípios basilares do Direito Público dos ordenamentos jurídicos domésticos devem alicerçar o desenvolvimento dos mecanismos, procedimentos e normas do Direito Administrativo Global. Meilán Gil entende que os direitos humanos devem consistir no corpo jurídico comum e eixo da Principiologia jurídica da ação administrativa global. Palombella ressalta que a edificação da ordem jurídica do Direito Administrativo Global implica a interface e a interação com as demais ordens jurídicas, mediante a cooperação dos Estados nacionais e de outros entes políticos, judiciais e administrativos (exempli gratia, a União Europeia).

3 A fisiologia do Direito Administrativo Global se adéqua a uma legalidade lato sensu, com sentido de juridicidade, em sintonia com a tendência atual de se dilatar o princípio da legalidade, em favor do controle da atividade administrativa à luz dos princípios jurídicos. Ao se divisar a legalidade em sentido amplo, a traduzir juridicidade, apregoa-se conformar a atuação dos atores do espaço administrativo global a um plexo normativo esculpido por uma matriz principiológica pluralista, haurida de múltiplos ordenamentos jurídicos.

4 Embora se perceba a vocação principiológica do Direito Administrativo Global e a importância desse ramo jurídico, à vista do ambiente regulatório contemporâneo, nota-se, de outra banda, a dificuldade de se definir a espinha dorsal principiológica do DAG, em virtude (a) da ausência de consenso mundial em torno da universalidade dos direitos humanos e dos princípios publicistas democráticos, (b) da infiltração, no cenário regulatório, dos poderes político e econômico dos países mais desenvolvidos, por vezes a esvaziar, no caso concreto, a atuação de organismos multilaterais, e (c) do complexo manejo do soft law, composto por normas jurídicas que, não vinculantes sob o prisma formal (ad exemplum, recomendações de organismos internacionais, tais quais a OCDE, o Banco Mundial e o FMI), possuem alta força persuasiva.

5 Nesse cenário, urge organizar o espaço administrativo global, perquirindo-se, de plano, (a) seus princípios comuns (tendo-se por ponto de partida, consoante obtempera Rodríguez-Arana Muñoz, a Declaração Universal dos Direitos Humanos e a cláusula do Estado de Direito), assim como (b) as alternativas para se colmatar a plêiade de fragilidades dessa incipiente ambiência jurídica (simbolizada pelo déficit de balizas jurídicas sedimentadas, de legitimidade democrática, de participação popular, de publicidade-transparência, de segurança jurídica e de isonomia), (c) aprofundando-se em escala mundial a pesquisa sobre a Principiologia do DAG (calha evitar que o DAG seja o reflexo preponderante de uma corrente de pensamento doutrinal teuto-anglo-europeia ou ocidental) e (d) se enxergando no Direito Administrativo Global vetor democrático, irmanado com o constitucionalismo global (refundação da ordem mundial esteada no constitucionalismo global, e não apenas o gradual aperfeiçoamento do controle da atividade regulatória global), além de se pensar (e) como compatibilizar a heterohierarquia, a multidimensionalidade e o pluralismo sistêmico com a construção das pilastras principiológicas comuns do DAG, (f) como modelar cada regime regulatório global, sem desnaturar as suas peculiaridades, à luz do interesse geral da humanidade, e (g) como depurar o espaço administrativo global da primazia do interesse dos grupos econômicos multinacionais e transnacionais, bem como das nações industrializadas e pós-industrializadas, em prejuízo da igualdade de armas (aspecto assinalado por Chesterman) e, em consequência, em detrimento da maioria dos povos e nações, desprovida de elevado poder econômico, militar e político.”

Como citar este trecho:


Cf. FROTA, Hidemberg Alves da Frota. A norma de reconhecimento e o caráter publicista do Direito Administrativo Global. In: MARRARA, Thiago (Org.). Direito Administrativo: transformações e tendências. São Paulo: Almedina, 2014. p. 201-203.

quarta-feira, 8 de janeiro de 2025

As três dimensões do direito à diversidade existencial: leituras fenomenológico-existenciais e decoloniais

 Em sua primeira dimensão, o direito à diversidade existencial consiste em direito de proteção e defesa dos humanos que integram minorias e dos grupos vulneráveis, principalmente ante as práticas de matriz colonial relacionadas com expressões estruturais e sistêmicas de preconceito e discriminação concernentes ao sexismo, ao racismo, ao capacitismo, ao etarismo e à intolerância (esta sobremaneira direcionada tanto a minorias sexuais e de gênero quanto a minorias étnicas e religiosas). Nessa primeira dimensão, o direito à diversidade existencial constitui o direito ao combate à estigmatização da diferença e à proteção e defesa de vítimas de modelos opressivos de normalidade, impostos pela via normativa e naturalizante.

Em sua segunda dimensão, o direito à diversidade existencial consubstancia o direito individual e coletivo de emancipação das maneiras de existir historicamente esculpidas e impostas pela matriz colonial, a fim de que o projeto de ser ou projeto existencial dos humanos pertencentes a povos do Sul (incluindo-se o Sul Global e o Sul Geopolítico) possa se libertar do condicionamento histórico de ter de (ou buscar a todo custo) reproduzir a existência colonizadora. Nessa segunda dimensão, o direito à diversidade existencial é a ressonância jurídica de percursos de lutas dos povos do Sul pela sobrevivência em circunstâncias marcadas pela desigualdade social, racismo e sexismo estruturais, violência identitária, colonialismo, neocolonialismo e imperialismo.

Em sua terceira dimensão, o direito à diversidade existencial é a norma jusfundamental de enfrentamento das facetas necropolítica e necro-eco-política do projeto colonial. Nessa terceira dimensão, o direito à diversidade existencial corresponde ao direito da humanidade e do orbe terrestre à emancipação da moldura da colonialidade, em prol da totalidade (a) dos seres humanos, notadamente daqueles relegados à condição de sub-humanos e sub-humanidades, (b) dos seres não humanos, (c) da biosfera e (d) do mundo natural. Nessa terceira perspectiva, a mais ampla de todas, o direito à diversidade existencial compreende o direito à emancipação da matriz colonial de todos os elementos constitutivos, de modo direto e indireto, da existência planetária, ainda que inanimados. Em suma, o direito à diversidade existencial, nessa terceira acepção, reverbera, na ordem jurídica, o direito à emancipação da matriz da colonialidade de toda (a) a humanidade, (b) a vida planetária e (c) o mundo natural. O rol de destinatários do direito à diversidade existencial, nessa terceira configuração, abarca, portanto, não só os componentes da biodiversidade global, inclusive os seres sencientes, os ecossistemas, o acervo genético da humanidade e da natureza, a fauna, a flora, os microrganismos, o ar, os rios, os mares e os oceanos, como também os demais elementos da diversidade do mundo natural, abrangendo a proteção e defesa da integridade e integralidade da diversidade planetária, em sua plenitude, a incluir, pois, a proteção e defesa da incolumidade da diversidade dos elementos geológicos e minerais do orbe terrestre, tais quais as rochas, o solo e os cristais.”

Como citar: FROTA, Hidemberg Alves da. As dimensões do direito à diversidade existencial: leituras decoloniais e fenomenológico-existenciais. O Direito, Lisboa, v. 156, n. 4, p. 729-747, dez. 2024.

Leia o inteiro teor do artigo acadêmico (acima citado) sobre o direito à diversidade existencial aqui.

Capa da Revista O Direito, Ano 156º, 2024, IV, em que consta o artigo sobre as dimensões do direito à diversidade existencial acima citado