terça-feira, 29 de julho de 2025

Os direitos existenciais: leituras fenomenológicas e decoloniais em diálogo com o constitucionalismo transformador

 

“[...] As bases ontológicas dos direitos existenciais dizem respeito ao movimento de o existente humano, de modo incessante, antecipar a si mesmo, ao projetar campos de sentido que lhe facultam ser a si mesmo por meio do seu poder-ser. Os direitos existenciais, como expressões jurídicas do existir, vicejam na facticidade, haja vista que os direitos existenciais não são direitos preestabelecidos, proporcionados a priori, de forma espontânea, à revelia da historicidade, dados pelas forças da natureza, mas decorrem de possibilidades que surgem em determinado mundo fático sedimentado de que o ordenamento jurídico configura desdobramento, inclusive o Direito Constitucional Positivo e os tratados do Direito Internacional dos Direitos Humanos. Os direitos existenciais, sendo direitos ínsitos ao existir e ao movimento existencial de cada um, eclodem ante a interface entre a existência e a facticidade, em meio a articulações e rearticulações históricas das possibilidades fáticas que se apresentam no mundo, com ressonância na ordem jurídica em geral. Os direitos existenciais se constituíram e se constituem no mundo fático sedimentado, como construções históricas dos existentes humanos e das suas coletividades que se positivaram e se positivam no ordenamento jurídico. São repercussões jurídico-normativas da experiência humana nos horizontes históricos sedimentados a partir dos quais o existente humano realiza decisões do pensamento que lhe fazem sentido. Os direitos existenciais são emanações jurídico-normativas dentro da historicidade (e não fora dela, nem antes ou depois dela), e o seu exercício, por sua vez, concretiza, no mundo fático sedimentado, o poder-ser-no-mundo em determinada tessitura histórico-epocal.

Os direitos existenciais não são direitos inerentes à natureza humana, mas à existência do ser-no-mundo, porque o existente humano, pensado em termos ontológicos, não possui natureza, tampouco consiste em um ente subsistente por si mesmo, uma vez que o existente humano se encontra, ontologicamente, desprovido de qualquer essência formada por propriedades quiditativas que tenham sido dadas e constituídas de maneira prévia. Os direitos existenciais são direitos que, com assento no Direito Positivo, reverberam no ordenamento jurídico a fenomenologização, no seio da historicidade, da existência do ser do homem. Os direitos existenciais estão conectados com o poder-ser-no-mundo. Entretanto, esse poder-ser pode assumir caráter não só próprio como também impróprio. O poder-ser, seja próprio, seja impróprio, assim como a esfera do impessoal, encontram-se destituídos quer de valorações morais, quer de conotação antropológica. Próprio e impróprio, nesse contexto, não constituem juízos de valor de cunho imediato. O poder-ser próprio não é um modo de ser moralmente autêntico. O poder-ser impróprio, a seu turno, não é um modo de ser moralmente inautêntico.

Os direitos existenciais, imbricados com o projeto de ser e a dimensão da decisão, são desdobramentos do campo existencial. Os direitos existenciais se constroem na concretude da existência, por força do caráter ekstático dela, de sorte que o existente humano é jogado, em uma irrupção de modo abrupto e imediato, no mundo fático sedimentado, que é o seu próprio mundo, em meio às possibilidades existenciárias (possibilidades fáticas de ser) inerentes a esse mundo. No âmago dos direitos existenciais encontra-se o direito de o existente humano, ao se projetar no campo existencial, dar vazão a possibilidades de ser, à proporção que identifica essas possibilidades que, imanentes à vida fática, fazem sentido para si mesmo. Ao se divisar o dano existencial, composto pelos danos ao projeto de vida e à vida de relação, e ao se situarem, na seara dos direitos existenciais, os direitos relacionados com a liberdade como possibilidade para a possibilidade, inclusive os direitos à diversidade e à rearticulação existenciais, à retomada da existência, ao cuidado e de desfazer laços de ilusão, evoca-se, de forma subjacente, o direito existencial a possibilidades de ser na vida fática.

Os direitos existenciais são expressões jurídico-normativas da experiência humana, na facticidade, como pura performance. São incompatíveis com os direitos existenciais estruturas de opressão que, por intermédio do ordenamento jurídico, de maneira explícita ou implícita, reduzam a parcela da humanidade a usufruir do estatuto jurídico de humanos ao contingente que contempla normas jurídicas de reconhecimento da natureza humana, positivadas em prejuízo de minorias e grupos vulneráveis, e, ao mesmo tempo, em benefício de grupos sociais que exercem o domínio do poder por meio quer das searas política (inclusive geopolítica), militar, religiosa, cultural, educacional, acadêmica, intelectual, científico-tecnológica, econômica e social, quer dos campos da informação e da comunicação, quer da esfera da vida privada, quer dos âmbitos da moralidade social ou comum e da normatividade jurídica. À luz dessa perspectiva, os direitos existenciais se desdobram no direito à diversidade existencial, como direito de emancipação da matriz da colonialidade, seja das minorias e dos grupos vulneráveis, seja dos povos do Sul (incluindo-se os do Sul Geopolítico), seja da humanidade em geral, da vida planetária e do mundo natural, para que, mediante a ruptura com estruturas de opressão, outros modos de ser na vida fática possam ser visibilizados e viabilizados, libertos de relações marcadas pela lógica da conquista, da exploração e da subjugação de seres vivos humanos e não humanos, da humanidade e da natureza.

A efetividade dos direitos existenciais quer das minorias e dos grupos vulneráveis, quer dos povos do Sul, quer dos oprimidos em geral pela matriz da colonialidade, poderá ser fomentada, no mundo fático sedimentado, por meio do acolhimento ao constitucionalismo transformador. Mostra-se relevante pensar os direitos existenciais aproximando-se os pensamentos fenomenológico e decolonial do constitucionalismo transformador, porquanto os direitos existenciais daqueles subalternizados por estruturas de opressão apenas serão, de fato, respeitados se houver uma mobilização coletiva, tanto da sociedade civil (inclusive das comunidades universitária e jurídica, bem assim dos movimentos populares, das entidades classistas, das agremiações políticas, das organizações religiosas e do Terceiro Setor), quanto da institucionalidade brasileira, a serviço da sociedade civil, inclusive por intermédio dos Poderes de Estado, da Administração Pública e de órgãos públicos que, mesmo não sendo Poderes de Estado, possuem nível elevado de autonomia de estatura constitucional (Tribunais de Contas, Ministério Público e Defensoria Pública), com a finalidade de que sejam modificadas quer as relações de poder, quer as instituições de âmbito político e social, em prol de uma sociedade mais igualitária, democrática e participativa, em que haja transformações sociais em larga escala, ao influxo de processos políticos não violentos com esteio no ordenamento jurídico. Promover a igualdade substancial, nessa contextura, significa abraçar uma visão mais ampla da igualdade de condições, com o desiderato de que as políticas públicas sejam direcionadas não apenas (a) a propiciar tanto o mínimo vital quanto o mínimo existencial, mas também (b) à redução, de modo maciço, das principais desigualdades, com a sua subsequente e efetiva eliminação. Assegurar o desenvolvimento nacional (artigo 3.º, inciso II, da CF/88) implica, necessariamente, o fomento à igualdade substancial e à solidariedade social (interpretação conjunta dos artigos 3.º, inciso I, e 5.º, caput, da CF/88), em prol do bem de todos (artigo 3.º, inciso IV, da CF/88) e do primado da dignidade da pessoa humana (artigo 1.º, inciso III, da CF/88), com atenção prioritária aos direitos existenciais das minorias e dos grupos vulneráveis, a exemplo das mulheres negras e dos homens negros, os quais, assim como os povos originários, têm sido os mais expostos a contextos de pobreza, marginalização, desigualdade social e regionais a que se reporta o inciso III do artigo 3.º da Constituição Federal de 1988.

É indispensável o combate efetivo a ressonâncias centenárias das colonialidades do ser, do saber e do poder relacionadas com estruturas de opressão que, normalizadas, normatizadas e naturalizadas, fizeram e fazem com que vidas colonizadas fossem e sejam reduzidas ao lugar da não-existência e de ser-menos, em um processo de desfenomenologização no bojo do qual, invisibilizadas, nega-se-lhes a condição de seres humanos. A promoção dos direitos existenciais, pela adesão ao constitucionalismo transformador, mormente pelos povos do Sul, significa fomentar o giro decolonial, inclusive por intermédio da função jurisdicional constitucional, com o intuito de que sejam criadas possibilidades de existir e coexistir fora da colonialidade, pela transformação existencial (modificação de modos de ser), conjugada com a transformação social, pela sociedade civil, coadjuvada pela sistemática e efetiva atuação, em seus respectivos âmbitos de atribuição, dos Poderes de Estado, dos Tribunais de Contas, da Administração Pública, do Ministério Público, da Advocacia, da Advocacia Pública, da Defensoria Pública e da institucionalidade brasileira de forma geral, na prevenção, repressão e eliminação de todos os modos diretos e indiretos de se retroalimentarem estruturas de opressão, tais quais aquelas atinentes aos racismos estrutural e sistêmico, assegurando-se aos oprimidos e oprimidas e aos colonizados e colonizadas novos campos de possibilidades fáticas de ser no mundo. Mediante o giro decolonial, impulsionado pela interconexão entre os direitos existenciais e o constitucionalismo transformador, galvaniza-se o processo de reexistência das vidas colonizadas e oprimidas, de sorte que elas passem a ser, cada vez mais, visibilizadas e viabilizadas, (a) ao se desconstruírem os (não-)lugares em que viceja a dicotomia visíveis e invisíveis, e (b) ao se semearem, na seara da facticidade, possibilidades de ser não coloniais, libertando-se da colonialidade existências e coletividades por ela oprimidas. [...]”

 

Leia o inteiro teor deste paper aqui.

 

Como citar este artigo acadêmico:

 

FROTA, H. A. da. Os direitos existenciais: leituras fenomenológicas e decoloniais em diálogo com o constitucionalismo transformador. Revista Jurídica UNIGRAN, Dourados, v. 27, n. 53, p. 55-88, jan.-jun. 2025. Disponível em: https://www.unigran.br/revistas/juridica. Acesso em: 29 jul. 2025.

 



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