O acórdão de 2019 da Divisão de Gauteng em Pretória da Corte Superior da África do Sul declarou ilegal e inválida decisão eclesiástica, de caráter interpretativo e teológico, adotada em novembro de 2016, pelo Sínodo-Geral da Igreja Neerlandesa Reformada da África do Sul:
1. Em novembro de 2016, o Sínodo-Geral decidiu que gays e lésbicas poderiam desempenhar as funções de ministros e ministras, presbíteros e presbíteras, apenas se fossem pessoas celibatárias. Porém, sacerdotes heterossexuais poderiam continuar a optar entre o casamento e o celibato.
2. Ademais, o Sínodo-Geral decidiu que ministros e ministras da Igreja seriam proibidos de celebrar cerimônia religiosa de casamento entre pessoas do mesmo sexo.
Assim, ao tornar ilegal e inválida a decisão eclesiástica de novembro de 2016, a Corte Superior da África do Sul ocasionou efeito repristinatório da decisão eclesiástica anterior, adotada pelo Sínodo-Geral em outubro de 2015.
Na época, o Sínodo-Geral, diferentemente da decisão posterior, de 2016, (a) autorizara o acolhimento eclesial das uniões civis entre pessoas do mesmo sexo, desde que esses relacionamentos fossem imbuídos de amor e fidelidade mútuos, e (b) facultara aos sacerdotes estenderem ou não efeitos religiosos às uniões civis entre pessoas do mesmo sexo e de celebrarem, se assim desejassem, cerimônia religiosa de casamento entre pessoas do mesmo sexo, a par de haver (c) autorizado que gays e lésbicas fossem ordenados ministros e ministras, presbíteros e presbíteras, sem a exigência do celibato.
Estabelecido esse contraste entre as decisões de 2016 e de 2015 do Sínodo-Geral da Igreja Neerlandesa Reformada da África do Sul, cumpre recapitular quais os principais eixos argumentativos do acórdão de março de 2019, lavrado pela Divisão de Gauteng em Pretória da Corte Superior da África do Sul, no que se refere aos seus argumentos de direito material:
1. A Corte salientou que se fazia presente, naquele caso concreto, a presunção relativa de injusta discriminação quanto à orientação sexual e à ofensa à dignidade da comunidade LGBTQIA+. Como se tratava de discriminação específica (delimitada a um grupo vulnerável), caberia à Igreja Neerlandesa Reformada da África do Sul o ônus da prova, do qual ela não conseguiu se desincumbir.
2. A Corte realçou que a decisão eclesiástica de 2016 obstava o usufruto igualitário e pleno de “todos os direitos e liberdades”. Ao mesmo tempo, a Corte percebeu que a Igreja tinha, sim, à época, a possibilidade de adotar decisão eclesiástica alternativa, como aquela que ela mesma havia adotado em 2015, compatível com os propósitos religiosos da Igreja e, por outro lado, menos restritiva e menos desvantajosa à comunidade LGBTQIA+.
3. A Corte percebeu que a decisão eclesiástica de 2016 não representava o posicionamento da totalidade do Sínodo-Geral, e sim espelhava verdadeira cisão naquele Órgão Superior da Igreja. Demais disso, a Corte não enxergou qualquer finalidade social relevante na decisão eclesiástica de 2016.
4. A Corte ressaltou que a decisão eclesiástica de 2016 excluía a comunidade LGBTQIA+ de posições de liderança naquela Igreja e a alijava do direito a casamentos religiosos. Dessa forma, a Corte detectou que a decisão de 2016 acarretava tratamento desigual, do ponto de vista da igualdade substancial. Ela vislumbrou também efeito colateral negativo, nessa mesma decisão de 2016, na medida em que tal decisum eclesiástico acabava por forçar gays e lésbicas a buscarem casamento religioso em outra denominação religiosa que não a sua.
5. Embora a Corte tenha reconhecido que se tratava de discussão fora do âmbito das relações jurídicas com o Estado (inclusive fora da seara do processo administrativo), já que surgida no seio de comunidade eclesiástica, consignou a necessidade de que fosse salvaguardada a supremacia da Constituição, uma vez que a matéria estava judicializada.
6. A Corte frisou, ao final, a ausência de respaldo, na jurisprudência da África do Sul, ao argumento da Igreja de que ela, por meio da sua decisão de 2016, teria realizado o balanceamento entre os direitos à orientação sexual e à liberdade de religião.
Desse modo, o acórdão de março de 2019 da Corte Superior da África do Sul coaduna-se com o princípio da proporcionalidade, tripartido nos subprincípios da adequação, da necessidade e da proporcionalidade em sentido estrito.
Trata-se de medida judicial adequada, haja vista que o meio empregado é lícito: cuida-se do exercício de competência jurisdicional da Divisão de Gauteng em Pretória da Corte Superior da África do Sul de proteger os direitos fundamentais à igualdade substancial e à orientação sexual, conforme previsto na Constituição sul-africana de 1996. Adequada também porque a finalidade de resguardar a comunidade LGBTQIA+ de injusta discriminação é fim constitucionalmente legítimo, à luz dos dispositivos da Constituição sul-africana vigente. E, por derradeiro, adequada pois o meio empregado pela Corte Superior da África do Sul, consubstanciado nesse provimento jurisdicional, mostrou-se, além de célere e congruente com a duração razoável do processo judicial, apto a promover tais direitos fundamentais: afastou do ordenamento jurídico sul-africano a decisão eclesiástica de 2016 e, em consequência, propiciou efeito repristinatório em relação à decisão eclesiástica anterior, de 2015.
Demais disso, o acórdão em questão consiste em medida judicial necessária, isto é, indispensável. Necessária porquanto não havia à disposição da Divisão de Gauteng em Pretória da Corte Superior da África do Sul medida judicial igualmente adequada e, ao mesmo tempo, menos intrusiva na autonomia privada, na liberdade de religião e no direito geral de autodeterminação da Igreja Neerlandesa Reformada da África do Sul que pudesse alcançar a mesma finalidade, com a mesma eficácia, no sentido de evitar a discriminação negativa da comunidade LGBTQIA+. Necessária também pois, caso a medida judicial fosse menos intrusiva, o Poder Judiciário incorreria em déficit de proteção da comunidade LGBTQIA+.
Por outro lado, o acórdão de março de 2019 denota-se medida judicial proporcional em sentido estrito. As vantagens propiciadas à igualdade substancial, à orientação sexual e à identidade de gênero superam as desvantagens à liberdade de religião, à autonomia privada e à autodeterminação da Igreja.
Não seria justificável que o Poder Judiciário mantivesse, em termos absolutos, a autonomia da Igreja para fixar, a seu talante, as suas normas internas que disciplinam o casamento religioso e o desempenho de funções sacerdotais, porque imporia desmesurado grau de sacrifício ao projeto de vida, à vida privada, à intimidade familiar, ao bem-estar psicológico e à integridade moral dos membros da comunidade LGBTQIA+ filiados à Igreja, bem como ao sentido existencial mais profundo da convivência em comunidade eclesiástica.
Como o Sínodo-Geral da Igreja já havia adotado, no intervalo de cerca de um ano, duas decisões diametralmente opostas, deveria prevalecer, como de fato prevaleceu, a decisão de 2015, a título in dubio pro homine, porque era a decisão destituída de caráter discriminatório.
Não havia a possibilidade de que o Poder Judiciário adotasse decisão alternativa, cuja menor eficácia na proteção à isonomia substancial, à orientação sexual e à identidade de gênero fosse eventualmente compensada por nível menos intenso de mitigação da autonomia privada, da liberdade religiosa e da autodeterminação da Igreja.
De todo modo, o aresto em estudo não deve ser aplicado de forma indiscriminada. Ao realizar o cotejo entre o acórdão da Corte Superior da África do Sul de março de 2019 e as circunstâncias de determinado processo judicial, é preciso verificar se, na comunidade eclesiástica considerada, existem ou não demandas e reivindicações individuais e coletivas pela promoção dos direitos religiosos de pessoas LGBTQIA+.
Convém ter em mente o contexto cultural e religioso em que se insere a comunidade eclesiástica considerada, para se prevenir que a intervenção do Estado-Juiz represente carga coativa demasiada e a fim de se evitar que sirva de pretexto para que o grupo majoritário aumente a opressão das minorias sexuais e de gênero. Daí a importância de se aquilatar se, na comunidade eclesiástica em questão, existe abertura, mínima que seja, para a promoção de direitos fundamentais da comunidade LGBTQIA+ (perquirindo-se, por exemplo, se há movimentos internos para torná-la mais aberta à diversidade sexual e de gênero).
Em síntese, é imprescindível a avaliação criteriosa dos diversos atravessamentos (inclusive históricos, psicológicos, antropológicos, sociológicos, econômicos, culturais, religiosos e axiológicos) que envolvem as relações sociais e institucionais em determinada comunidade eclesiástica e ponderar os efeitos individuais e coletivos que a decisão judicial acarretará justamente sobre os grupos vulneráveis.
In: FROTA, H. A. da; BARROS, Renata F. de. Igualdade substancial,
casamento religioso e sacerdócio por pessoas LGBTQIA+: análise do caso Gaum. Caderno
de Direito e Políticas Públicas, Rio de Janeiro, v. 3, n. 1, jan.-dez. 2022, p.
36-39.
Leia o artigo
completo: Igualdade
substancial, casamento religioso e sacerdócio por pessoas LGBTQIA+: análise do
caso Gaum.
Como citar a
referência bibliográfica: FROTA, Hidemberg Alves da; BARROS,
Renata Furtado de. Igualdade substancial, casamento religioso e sacerdócio por
pessoas LGBTQIA+: análise do caso Gaum. Caderno de Direito e Políticas
Públicas, Rio de Janeiro, v. 3, n. 1, p. 1-47, jan.-dez. 2022.
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