A Natureza Jurídica das CPIs e do Inquérito Parlamentar[1]
Hidemberg Alves da Frota
As Comissões Parlamentares de Inquérito brasileiras constituem órgãos colegiados[2], fracionários , transitórios e auxiliares [3] das Casas Legislativas pátrias, investigando, por prazo certo [4], fato (s) determinado (s)[5] de interesse público [6], de natureza política , administrativa , jurídica , social ou econômica [7].
Por prazo certo (art. 58, § 3º, 2ª parte , da CF/88[8]), incumbe às CPIs examinarem possíveis e específicas irregularidades , plasmadas em fato(s) determinado (s) (art. 58, § 3º, 2ª parte , da CF/88, c/c art. 1º, caput , parte final , da Lei n. 1.579, de 18 de março de 1952[9]), pertinentes ao aparelho estatal , ao corpo social ou à ordem econômica [10] da respectiva unidade da Federação [11].
As CPIs têm o fim primordial de fiscalizar o respeito ao ordenamento jurídico pelo Poder Público , pela sociedade ou pela economia do ente federativo a que se vincula sua Casa Legislativa (federal, estadual, distrital ou municipal) e os objetivos secundários de municiar o respectivo Parlamento de subsídios para a confecção de diplomas legislativos e informar ao público acerca do andamento do respectivo inquérito parlamentar [12].
Periféricas e ad hoc[13], estabelecidas mediante requerimento de 1/3 (um terço) dos membros da Casa Legislativa [14] (art. 58, § 3º, 2ª parte , da CF/88), representam voz minoritária dentro do Parlamento [15], embora sua composição seja proporcional aos partidos ou blocos parlamentares [16].
Temporárias[17], duram, no máximo , até o final da legislatura em que foram concebidas[18]. (As legislaturas do Congresso Nacional são quadrienais — art. 44, parágrafo único, da CF/88 —, como o são as legislaturas das demais Casas Legislativas brasileiras, em conformidade com o princípio da simetria e do paralelismo das formas, implícito nos arts. 25, caput, 29, caput, e 32, caput, todos da CF/88.)
Autônomas, desfrutam de atuação independente do Parlamento , o qual , em consequência, não pode interferir em suas deliberações .
Especializadas, debruçam-se sobre fato (s) determinado (s), sendo seus integrantes , de preferência , especialistas [19] no assunto objeto da investigação .
Ancilares (auxiliares)[22] e investigativas[23], realizam pesquisas a subsidiarem a edição de leis pelo Parlamento e ajudam este a exercer seu mister fiscalizatório e informativo.
A investigação das Comissões Parlamentares de Inquérito se descortina em sede de processo [24] extrajudicial (inteligência do art. 6º, 1ª parte , da Lei n. 1.579/52), ultimado com o advento de juízo de valor conclusivo, insculpido no relatório final das investigações efetuadas, contido, por sua vez , em projeto de resolução , se disser respeito não apenas à competência fiscalizatória, mas também à competência legislativa daquela Casa das Leis [25].
A propósito , a competência fiscalizatória tende a ultrapassar a competência legislativa [26]. Daí por que as Casas Legislativas estaduais, distrital e municipais, conquanto seja de competência privativa da União legislar, ad exemplum[27], acerca de Direito Civil , Penal , Eleitoral , Comercial , Agrário e do Trabalho (art. 22, inciso I, da CF/88), podem investigarem — por meio , inclusive , de CPIs — matérias pertinentes a tais ramos jurídicos, desde que se trata de investigação em que reste patente o interesse do respectivo ente estatal (verbi gratia, em caso de CPI municipal, cumpre estar suficientemente demonstrado nos autos do inquérito parlamentar o interesse local em se proceder a essa atividade de pesquisa ou investigação — a exemplo de uma Comissão Parlamentar de Inquérito destinada a se debruçar sobre fato determinado relativo às condições de trabalho dos jovens trabalhadores portadores de deficiência física e a propor, se for o caso, medidas administrativas e legislativas benéficas a essa parcela de trabalhadores).
Ao inquérito parlamentar refoge o papel de procedimento administrativo preparatório para hipotético processo judicial condenatório ou processo ou fase de execução (penal ou cível ) deste derivado, não plasmando o fito de pavimentar o caminho para o Ministério Público ajuizar ação penal pública, ação civil pública [28] ou ação por ato de improbidade administrativa.
A natureza jurídica do inquérito parlamentar transcende a de típico procedimento administrativo inquisitorial, como os presididos pelos Delegados de Polícia (inquéritos policiais [29] civis e federais [30]) e pelos membros do Ministério Público (inquéritos civis e procedimentos administrativos inominados[31]).
Diferente dos Órgãos Policiais e Ministeriais, cujas existências ultrapassam a de seus inquéritos , a Comissão Parlamentar de Inquérito dura enquanto estiver em curso o único inquérito parlamentar sob seus auspícios , estando um atado ao outro como irmãos siameses, à semelhança da maioria das Comissões Disciplinares[32] (ou Comissões de Disciplina [33]), condutoras (exempli gratia, na seara federal ) do inquérito administrativo (salvo as situações em que entes estatais possuem Comissões Permanentes de Disciplina).
Adstritos a subsidiar o juízo de convencimento ministerial no âmbito judicial (esboçado na petição inicial e sedimentado nas alegações finais ), os inquéritos policial e civil não aventam juízos conclusivos. Já o inquérito parlamentar , tal qual o inquérito administrativo na esfera federal (nos termos dos arts. 165 e 166 c/c art. 150, caput , 1ª parte, todos da Lei n. 8.112, de 11 de dezembro de 1990, o Estatuto dos Servidores Públicos Civis da União , Autarquias e Fundações Públicas Federais [34]), transmite, em sua fase derradeira , entendimento definitivo sobre a controvérsia analisada, elaborado — no bojo do relatório final do inquérito parlamentar — por órgão colegiado, temporário e autônomo , mas incompetente (porque despossuído de quaisquer resíduos de função jurisdicional — a qual prepondera no Poder Judiciário e remanesce em outros ramos do Poder Público, tais quais os Tribunais de Contas, quando julgam ordenadores de despesa) e destituído de poder de polícia suficiente para aplicar sanções .
Quanto ao aspecto acima abordado (relativo ao fato das Comissões Parlamentares de Inquérito alinhavarem juízos de valor conclusivos mesmo sem decidirem sobre a aplicação ou não de sanção jurídica), as CPIs se assemelham quer (a) às Comissões Disciplinares, quando apenas encaminham o relatório final à autoridade administrativa superior, para que esta decida se aplica ou não dada sanção disciplinar, quer (b) aos Tribunais de Contas, nas circunstâncias nas quais apreciam as contas prestadas a cada ano pelos Chefes dos Poderes Executivos, porquanto , nessas circunstâncias , as Cortes Fiscais , por intermédio dos pareceres prévios encaminhados às correspondentes Casas Legislativas, exaram juízo de valor conclusivo e independente , porém desprovido de conteúdo decisório , pois , nesses casos, o julgamento, por ter no polo passivo a autoridade máxima executiva, será realizado posteriormente pelo Plenário do respectivo Parlamento (art. 71, inciso I, 2ª parte c/c art. 75, caput , todos da CF/88[35]).
[1] Versão original do presente artigo jurídico: FROTA, Hidemberg Alves da. A natureza jurídica dos poderes de investigação de autoridade judicial das Comissões Parlamentares de Inquérito. Doutrina ADCOAS: informações jurídicas e empresariais. Rio de Janeiro, v. 8, n. 8, p. 142-144, 2ª quinz. abr. 2005. Estudo incluído no corpo deste trabalho doutrinário: FROTA, Hidemberg Alves da. Teoria geral das Comissões Parlamentares de Inquérito brasileiras. Revista Jurídica UNIGRAN, Dourados, v. 7, n. 14, p. 87-122, jul.-dez. 2005; Anuario de Derecho Constitucional Latinoamericano, Montevideo, v. 12, n. 1, t. 1, p. 229-259, ene.-dic. 2006; Revista de Direito Constitucional e Internacional, São Paulo, v. 15, n. 59, p. 146-175, abr.-jun. 2007. Revisado em 10 de dezembro de 2010. Disponível na plataforma PDF.
[2] BULOS, Uadi Lammêgo. Comissão parlamentar de inquérito : técnica e prática . São Paulo: Saraiva , 2001, p. 2.
[3] Ibid., p. 15.
[4] ALVES, José Wanderley Bezerra . Comissões Parlamentares de Inquérito : poderes e limites de atuação . Porto Alegre : SAFE, 2004, p. 117.
[5] Ibid., loc. cit.
[6] Em percuciente dissertação de Mestrado , Alves associa o fato determinado a relevante interesse público , à semelhança do art. 35, § 1º, do Regimento Interno da Câmara dos Deputados (aprovado pelo art. 1º da Resolução n. 17, de 21 de setembro de 1989), o qual vislumbra como fato determinado o acontecimento de relevante interesse para a vida pública e a ordem constitucional , legal econômica e social do País , que estiver devidamente caracterizado no requerimento de constituição da Comissão . Cf. ALVES, José Wanderley Bezerra . Op. cit., p. 116, 484. Nesta monografia optou-se pela simples remissão ao interesse público , sem qualificá-lo de relevante , porque , em última análise , todo interesse público é relevante .
[7] Na visão de Meirelles, as CPIs materializam “uma das atribuições precípuas do Poder Legislativo : fiscalizar as atividades dos administradores ou de tantos quantos gravitam em torno do interesse público ” — evidência de que quaisquer matérias relacionadas ao interesse público — seja de cunho político , administrativo , jurídico , social ou econômico — podem justificar a instauração de Comissões Parlamentares de Inquérito . Cf. MEIRELLES, Hely Lopes. Comissão parlamentar de inquérito . In: Estudos e pareceres de direito público . São Paulo: RT, 1991, v. 11, p. 24. Apud CASTRO, José Nilo de. A CPI Municipal. 4. ed. Belo Horizonte : Del Rey, 2003, p. 24. “Por intermédio delas”, frisa Lôbo da Costa , “é o próprio Parlamento que investiga para esclarecer-se a propósito dos problemas de interesse público , sobre os quais tem de exercer sua atividade fiscalizadora.” Cf. LÔBO DA COSTA , Moacyr. Origem , natureza e atribuições das comissões parlamentares de inquérito : direito positivo brasileiro ; limitações constitucionais . Revista de Direito Público , São Paulo, n. 9, jul.-set. 1969, p. 111.
[8] BRASIL. Constituição (1988). Disponível em : <http://www.planalto .gov.br>. Acesso em : 7 jul. 2004.
[9] BRASIL. Lei n. 1.579, de 18 de março de 1952. Dispõe sobre as Comissões Parlamentares de Inquérito . Disponível em : <http://www.planalto .gov.br>. Acesso em : 7 jul. 2004.
[10] ALVES, José Wanderley Bezerra . Comissões parlamentares de inquérito : poderes e limites de atuação . Porto Alegre : SAFE, 2004, p. 122. Embora possa se referir ao plexo normativo do Direito Econômico , traz-se a lume neste trabalho a expressão ordem econômica como sinônima de atividade econômica ou relações econômicas. Cf. GRAU , Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1988. 5. ed. São Paulo: Malheiros, 2000, p. 51.
[11] Expressão tomada no sentido amplo , englobando-se no rol de unidades da Federação lato sensu a União , os Estados-membros, o Distrito Federal e os Municípios , de acordo com a leitura ampliativa da locução e de seus sinônimos (unidades federativas, entes federativos, pessoas político-administrativas, entidades político-constitucionais, entes estatais e congêneres ) imposta pelo art. 1º, caput , da CF/88.
[12] Sobre a ampla finalidade das CPIs, cf. ALVES, José Wanderley Bezerra . Op. cit., p. 119.
[13] Ibid., p. 116.
[14] SALGADO , Plínio. Comissões parlamentares de inquérito : doutrina , jurisprudência e legislação . Belo Horizonte : Del Rey, 2001, p. 53.
[15] Na esteira das Cartas Políticas de 1934 (art. 36, caput c/c art. 92, § 1º, inc. VI), 1946 (art. 53, caput), 1967 (art. 39) e 1969 (art. 37) — Constituição oficialmente denominada Emenda Constitucional nº 1, de 17 de outubro de 1969 —, a Constituição Federal de 1988 (art. 58, § 3º) apenas evoca a possibilidade das CPIs serem instauradas por meio do requerimento de um terço dos parlamentares . Por isso , não houve a recepção do art. 1º, parágrafo único , 1ª parte , da Lei n. 1.579/52, o qual prevê a criação daquelas por meio de decisão do Plenário da Casa Legislativa . Em verdade , o dispositivo legal em tela já era inconstitucional sob a égide da Constituição de 1946 (art. 53).
[16] MARINHO , Josaphat. Comissão parlamentar de inquérito — indicação de integrantes . Revista Trimestral de Direito Público , São Paulo, n. 4, out.-dez. 1993, p. 156.
[17] BULOS, Uadi Lammêgo. Comissão parlamentar de inquérito : técnica e prática . São Paulo, 2001, p. 14.
[18] Ibid., loc. cit.
[19] ALVES, José Wanderley Bezerra . Comissões parlamentares de inquérito : poderes e limites de atuação . Porto Alegre : SAFE, 2004, p. 122.
[20] Ibid., p. 121.
[21] Ibid., p. 122.
[22] BULOS, Uadi Lammêgo. Op. cit., p. 15.
[23] Ibid., loc. cit.
[24] SILVA, José Luiz Mônaco da. Comissões parlamentares de inquérito . São Paulo: Ícone , 1999, p. 58-59. Nesse sentido : FRANÇA, Pedro José Alexandre de Arruda P. Manual das CPI’s: legislação , doutrina e jurisprudência . Rio de Janeiro : Forense , 2001, p. 2.
[25] ALVES, José Wanderley Bezerra . Comissões parlamentares de inquérito : poderes e limites de atuação . Porto Alegre : SAFE, 2004, p. 297.
[26] Elucida o Ministro Paulo Brossard: “Podem ser objeto de investigação [pelas CPIs federais ] todos os assuntos que estejam na competência legislativa ou fiscalizatória do Congresso .” Cf. BRASIL. Supremo Tribunal Federal . Habeas corpus n. 71.039-RJ. Relator : Ministro Paulo Brossard. Brasília, DF, 7 de abril de 1994. Diário da Justiça da União , Brasília, DF, 6 dez . 1996. Disponível em : <http://www.stf.gov.br>. Acesso em : 13 jul. 2004.
[27] Enumeração exemplificativa, baseada no elenco do art. 22, inc. I, da CF/88.
[28] GONÇALVES, Luiz Carlos dos Santos . Comissões parlamentares de inquérito : poderes de investigação . São Paulo: Juarez de Oliveira , 2001, p. 40.
[29] Os inquéritos policiais civis têm como espeque legal o Livro I, Título II, arts. 4º a 23, do Código de Processo Penal . Cf. BRASIL. Código de Processo Penal . Disponível em : <http://www.planalto .gov.br>. Acesso em : 7 jul. 2004. Os inquéritos policiais federais , além do precitado fundamental legal , estribam-se, implicitamente, no art. 27, § 7º, da Lei Complementar n. 10.683, de 28 de maio de 2003. Cf. BRASIL. Lei Complementar n. 10.683, de 28 de maio de 2003. Dispõe sobre a organização da Presidência da República e dos Ministérios , e dá outras providências . Disponível em : <http://www.planalto .gov.br>. Acesso em : 7 jul. 2004.
[30] Além dos inquéritos policiais civis e federais , há o inquérito policial militar , “de inteira responsabilidade de um corpo de militares , destacado especialmente para sua condução , ligado à força a qual pertence o policial militar infrator ”. Cf. SILVA, Paulo Márcio da. Inquérito civil e ação civil pública : instrumentos da tutela coletiva . Belo Horizonte : Del Rey, 2000, p. 81. O inquérito policial militar se rege pelo disposto no Título III, arts. 9º a 28 do Código de Processo Penal Militar . Cf. BRASIL. Decreto-Lei n. 1.002, de 21 de outubro de 1969. Código de Processo Penal Militar . Disponível em : <http://www.planalto .gov.br>. Acesso em : 7 jul. 2004.
[31] Os inquéritos civis se ancoram principalmente no art. 129, inc. III, da CF/88. Os procedimentos administrativos inominados se respaldam no art. 26, inciso I, da Lei n. 8.625, de 12 de fevereiro de 1993, a Lei Orgânica Nacional do Ministério Público . Cf. BRASIL. Lei n. 8.625, de 12 de fevereiro de 1993. Institui a Lei Orgânica Nacional do Ministério Público , dispõe sobre normas gerais para a organização do Ministério Público dos Estados e dá outras providências . Disponível em : <http://www.planalto .gov.br>. Acesso em : 7 jul. 2004.
[32] Cuida-se de locução (Comissões Disciplinares) usual na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça . Nesse sentido : MS ns. 6.880/DF, 8.184/DF, 8.297/DF, 5.626/DF, 8.851/DF, 6.078/DF, 8.834/DF, 8.027/DF, 8.249/DF, 8.558/DF, 8.182/DF, 7.472/DF, 7.409-DF e 6.952-DF; ROMS ns. 9.143/DF, 10.265/BA, 10.266/BA, 10.872/PR e 7.318/PR; RESP n. 456.829/RN.
[33] Expressão (Comissões de Disciplina) acolhida pela doutrina . Cf. COSTA , José Armando. Processo administrativo disciplinar . 3. ed. Brasília, DF: Brasília Jurídica , 1999, p. 127.
[34] BRASIL. Lei n. 8.112, de 11 de dezembro de 1990. Disponível em : <http://www.planalto .gov.br>. Acesso em : 20 jul. 2004.
[35] Citou-se acima , primeiro , a norma constitucional alusiva ao envio de parecer prévio pelo Tribunal de Contas da União ao Congresso Nacional (art. 71, inciso I, 2ª parte, da CF/88), e, depois , o dispositivo constitucional que aplica, em relação ao funcionamento das Cortes Fiscais , o princípio da simetria com o centro e do paralelismo das formas (art. 75, caput, da CF/88).
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