domingo, 26 de dezembro de 2010

Terrorismo, responsabilidade estatal e a Lei n. 10.744/2003



Terrorismo e responsabilidade civil do Estado[1]

Hidemberg Alves da Frota

Em consequência dos atentados terroristas aos Estados Unidos da América em 11 de setembro de 2001, o Estado brasileiro buscou, por meio de sucessivos diplomas legislativos (as Leis ns. 10.309, de 22 de novembro de 2001, 10.459, de 15 de maio de 2002, 10.605, de 18 de dezembro de 2002, e 10.744, de 9 de outubro de 2003, diplomas legislativos oriundos da conversão, em leis ordinárias, de medidas provisórias) positivar o marco legal a reger a assunção, pela União, de responsabilidades civis perante terceiros, no caso de atentados terroristas ou atos de guerra contra aeronaves de matrícula brasileira operadas por empresas brasileiras de transporte aéreo público, excluídas as empresas de táxi aéreo (preâmbulo).
Essa evolução legislativa resultou no advento da mencionada Lei n. 10.744/2003, até hoje vigente (ano-base: 2011), cujo art. 1º (a contrario sensu) tornou sem prazo determinado o período em relação ao qual a União poderá arcar com prejuízos de até US$ 1.000.000.000,00 (um bilhão de dólares estadunidenses) provocados ao particular em tais circunstâncias.
O §§ 3º, 4º e 5º do art. 1º da Lei n. 10.744/03 delinearam extenso rol de eventos trágicos (atos terroristas, de guerra e correlatos) contra aeronaves brasileiras (exceto as de táxi aéreo) que ensejariam tal indenização pela União:
(1) Atos de guerra consistentes em qualquer guerra (pleonasmo do legislador), invasão, atos inimigos estrangeiros, hostilidades com ou sem guerra declarada, guerra civil, rebelião, revolução, insurreição, lei marcial, poder militar ou usurpado ou tentativas para usurpação do poder (art. 1º, § 3º).
(2) Ato terrorista com fins políticos ou terroristas (art. 1º, § 4º) — de novo, a redundância se deve à técnica legislativa empregada.
(3) Eventos correlatos relativos a greves, tumultos, comoções civis, distúrbios trabalhistas, ato malicioso, ato de sabotagem, confisco, nacionalização, apreensão, sujeição, detenção, apropriação, sequestro ou qualquer apreensão ilegal ou exercício indevido de controle de aeronave ou da tripulação em voo por parte de qualquer pessoa ou pessoas a bordo da aeronave sem consentimento do explorador (art. 1º, § 5º).
Enfileiram-se em uma só trincheira acontecimentos dos mais diversos matizes, indo da guerra ao ato malicioso, passando pelo confisco e por distúrbios trabalhistas, como sendo todas essas situações derivadas de atentados terroristas, atos de guerra ou eventos congêneres, motivos de até milionárias ou bilionárias indenizações. Daí a necessidade de uma interpretação teleológica e razoável da Lei nº 10.744/03, bem como da aplicação de tais dispositivos de forma muito cautelosa e bem sopesada.
Também convém ponderar que, conquanto, nesse contexto, o Estado não se apresente na qualidade de titular da responsabilidade objetiva (art. 37, § 6º, da CF/88) pelos danos provenientes de atos de terrorismo e quejandos, assumindo responsabilidades civis perante terceiros (observadas as restrições delineadas por tal disciplina jurídica, positivada na Lei n. 10.744/2003), nessas situações desponta, por outro lado, a omissão do dever do Estado nacional de assegurar a incolumidade das pessoas e do patrimônio sitos em território brasileiro (art. 144, caput, da CF/88).
É salutar a responsabilidade civil estatal encastoada na Lei n. 10.744/2003 e nos diplomas legislativos a ela anteriores, porquanto a responsabilidade civil extracontratual do Estado se apresenta de difícil caracterização perante o Poder Judiciário brasileiro, uma vez que, a exemplo da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, tem repelido a responsabilidade estatal estribada em déficit genérico de adequado serviço de segurança pública (de acordo com tal construção pretoriana, a conduta omissiva do Estado, a fim de evidenciar dano indenizável, impende consistir na “causa necessária, direta e imediata do ato ilícito”[2]):
PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO. ASSALTO PRATICADO CONTRA MOTORISTA PARADO EM SINAL DE TRÂNSITO. OMISSÃO DO ESTADO EM PROVER SEGURANÇA PÚBLICA NO LOCAL NEXO DE CAUSALIDADE. REQUISITO INDISPENSÁVEL. AUSÊNCIA.
1. A imputação de responsabilidade civil, objetiva ou subjetiva, supõe a presença de dois elementos de fato (a conduta do agente e o resultado danoso) e um elemento lógico-normativo, o nexo causal (que é lógico, porque consiste num elo referencial, numa relação de pertencialidade, entre os elementos de fato; e é normativo, porque tem contornos e limites impostos pelo sistema de direito).
2. Nesse domínio jurídico, o sistema brasileiro, resultante do disposto no artigo 1.060 do Código Civil/16 e no art. 403 do CC/2002, consagra a teoria segundo a qual só existe o nexo de causalidade quando o dano é efeito necessário de uma causa.
3. No caso, não há como afirmar que a deficiência do serviço do Estado, que não destacou agentes para prestar segurança em sinais de trânsito sujeitos a assaltos, tenha sido a causa necessária, direta e imediata do ato ilícito praticado pelo assaltante de veículo. Ausente o nexo causal, fica afastada a responsabilidade do Estado. Precedentes do STF e do STJ.
4. Recurso especial a que se dá provimento.[3]

[1] O presente artigo jurídico é a adaptação (escrita em 26 de dezembro de 2010, revisada e ampliada em 1º de abril de 2011 e, posteriormente, em 12 de janeiro de 2012) destes textos do mesmo autor: FROTA, Hidemberg Alves da. Terrorismo e ato malicioso. Revista Jurídica Consulex, Brasília, DF, v. 8, n. 187, p. 39, 31 out. 2004; id. Responsabilidade objetiva e terrorismo. Diário da Manhã, Goânia, p. 4, 4 jan. 2003. Cidades: Diário Jurídico; Jornal do Commercio, Manaus, n. 38.740, p. 2, 9 jan. 2003. Opinião; Diário de Cuiabá, Cuiabá, nº 10.536, 5 fev. 2003. Caderno Artigos. Também disponível na plataforma PDF.
[2] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (Primeira Turma). Ementa do acórdão em sede do Recurso Especial nº 843060/RJ. Relator: Ministro Teori Albino Zavascki. Brasília, DF, 15 de fevereiro de 2011 (votação unânime). DJe, Brasília, 24 fev. 2011. Disponível em: <http://www.stj.jus.br>. Acesso em: 1º mar. 2011.
[3] Ibid., loc. cit., grifo nosso.

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