segunda-feira, 6 de março de 2023

Da prisão arbitrária à ruptura do projeto existencial: diálogos entre Rollo May e Jean-Paul Sartre

Nesta pesquisa, foi proposto novo olhar sobre o conto de Rollo May intitulado “O homem que foi colocado numa gaiola”, à luz da proposta em construção na contemporaneidade, sobretudo nas últimas duas décadas, pela comunidade de psicólogos e filósofos brasileiros estudiosos do filósofo, escritor, crítico literário e dramaturgo Jean-Paul Sartre, de Psicologia Fenomenológico-Existencialista inspirada em suas obras literárias e filosóficas. Realizou-se pesquisa do tipo bibliográfica, baseada na consulta a artigos científicos e capítulos de livro de obras colegiadas vinculados à Psicologia e à Filosofia de matrizes sartrianas, bem como em textos filosóficos e ficcionais de Sartre. De início, examinou-se a liberdade ontológica em Sartre, debruçando-se sobre o conto de sua autoria intitulado “O muro”. Após, passou-se à interpretação da parábola de Rollo May, com base nos aportes colhidos da literatura brasileira especializada na Psicologia e na Filosofia de bases sartrianas, com destaque ao estudo da concepção sartriana de má-fé e das contribuições da Psicologia Fenomenológica e Existencialista de cariz sartriano e de formulação brasileira às questões do sofrimento psíquico, da ausência de campos de possíveis e da ruptura do projeto existencial. Em seguida, evidenciou-se a atualidade do texto ficcional de May, em cotejo com a realidade contemporânea pertinente à pena perpétua e ao confinamento solitário, em particular no sistema prisional da América do Norte.

In: FROTA, H. A. da. Da prisão arbitrária à ruptura do projeto existencial: diálogos entre Rollo May e Jean-Paul Sartre. Revista da Defensoria Pública do Estado de São Paulo, São Paulo, v. 4, n. 2, jul.-dez. 2022, p. 114.

Leia o artigo completo: Da prisão arbitrária à ruptura do projeto existencial: diálogos entre Rollo May e Jean-Paul Sartre.

Como citar a referência bibliográfica: FROTA, Hidemberg Alves da. Da prisão arbitrária à ruptura do projeto existencial: diálogos entre Rollo May e Jean-Paul Sartre. Revista da Defensoria Pública do Estado de São Paulo, São Paulo, v. 4, n. 2, p. 115-138, jul.-dez. 2022.

Igualdade substancial, casamento religioso e sacerdócio por pessoas LGBTQIA+: análise do caso Gaum

O acórdão de 2019 da Divisão de Gauteng em Pretória da Corte Superior da África do Sul declarou ilegal e inválida decisão eclesiástica, de caráter interpretativo e teológico, adotada em novembro de 2016, pelo Sínodo-Geral da Igreja Neerlandesa Reformada da África do Sul:

1. Em novembro de 2016, o Sínodo-Geral decidiu que gays e lésbicas poderiam desempenhar as funções de ministros e ministras, presbíteros e presbíteras, apenas se fossem pessoas celibatárias. Porém, sacerdotes heterossexuais poderiam continuar a optar entre o casamento e o celibato.

2. Ademais, o Sínodo-Geral decidiu que ministros e ministras da Igreja seriam proibidos de celebrar cerimônia religiosa de casamento entre pessoas do mesmo sexo.

Assim, ao tornar ilegal e inválida a decisão eclesiástica de novembro de 2016, a Corte Superior da África do Sul ocasionou efeito repristinatório da decisão eclesiástica anterior, adotada pelo Sínodo-Geral em outubro de 2015.

Na época, o Sínodo-Geral, diferentemente da decisão posterior, de 2016, (a) autorizara o acolhimento eclesial das uniões civis entre pessoas do mesmo sexo, desde que esses relacionamentos fossem imbuídos de amor e fidelidade mútuos, e (b) facultara aos sacerdotes estenderem ou não efeitos religiosos às uniões civis entre pessoas do mesmo sexo e de celebrarem, se assim desejassem, cerimônia religiosa de casamento entre pessoas do mesmo sexo, a par de haver (c) autorizado que gays e lésbicas fossem ordenados ministros e ministras, presbíteros e presbíteras, sem a exigência do celibato.

Estabelecido esse contraste entre as decisões de 2016 e de 2015 do Sínodo-Geral da Igreja Neerlandesa Reformada da África do Sul, cumpre recapitular quais os principais eixos argumentativos do acórdão de março de 2019, lavrado pela Divisão de Gauteng em Pretória da Corte Superior da África do Sul, no que se refere aos seus argumentos de direito material:

1. A Corte salientou que se fazia presente, naquele caso concreto, a presunção relativa de injusta discriminação quanto à orientação sexual e à ofensa à dignidade da comunidade LGBTQIA+. Como se tratava de discriminação específica (delimitada a um grupo vulnerável), caberia à Igreja Neerlandesa Reformada da África do Sul o ônus da prova, do qual ela não conseguiu se desincumbir.

2. A Corte realçou que a decisão eclesiástica de 2016 obstava o usufruto igualitário e pleno de “todos os direitos e liberdades”. Ao mesmo tempo, a Corte percebeu que a Igreja tinha, sim, à época, a possibilidade de adotar decisão eclesiástica alternativa, como aquela que ela mesma havia adotado em 2015, compatível com os propósitos religiosos da Igreja e, por outro lado, menos restritiva e menos desvantajosa à comunidade LGBTQIA+.

3. A Corte percebeu que a decisão eclesiástica de 2016 não representava o posicionamento da totalidade do Sínodo-Geral, e sim espelhava verdadeira cisão naquele Órgão Superior da Igreja. Demais disso, a Corte não enxergou qualquer finalidade social relevante na decisão eclesiástica de 2016.

4. A Corte ressaltou que a decisão eclesiástica de 2016 excluía a comunidade LGBTQIA+ de posições de liderança naquela Igreja e a alijava do direito a casamentos religiosos. Dessa forma, a Corte detectou que a decisão de 2016 acarretava tratamento desigual, do ponto de vista da igualdade substancial. Ela vislumbrou também efeito colateral negativo, nessa mesma decisão de 2016, na medida em que tal decisum eclesiástico acabava por forçar gays e lésbicas a buscarem casamento religioso em outra denominação religiosa que não a sua.

5. Embora a Corte tenha reconhecido que se tratava de discussão fora do âmbito das relações jurídicas com o Estado (inclusive fora da seara do processo administrativo), já que surgida no seio de comunidade eclesiástica, consignou a necessidade de que fosse salvaguardada a supremacia da Constituição, uma vez que a matéria estava judicializada.

6. A Corte frisou, ao final, a ausência de respaldo, na jurisprudência da África do Sul, ao argumento da Igreja de que ela, por meio da sua decisão de 2016, teria realizado o balanceamento entre os direitos à orientação sexual e à liberdade de religião.

Desse modo, o acórdão de março de 2019 da Corte Superior da África do Sul coaduna-se com o princípio da proporcionalidade, tripartido nos subprincípios da adequação, da necessidade e da proporcionalidade em sentido estrito.

Trata-se de medida judicial adequada, haja vista que o meio empregado é lícito: cuida-se do exercício de competência jurisdicional da Divisão de Gauteng em Pretória da Corte Superior da África do Sul de proteger os direitos fundamentais à igualdade substancial e à orientação sexual, conforme previsto na Constituição sul-africana de 1996. Adequada também porque a finalidade de resguardar a comunidade LGBTQIA+ de injusta discriminação é fim constitucionalmente legítimo, à luz dos dispositivos da Constituição sul-africana vigente. E, por derradeiro, adequada pois o meio empregado pela Corte Superior da África do Sul, consubstanciado nesse provimento jurisdicional, mostrou-se, além de célere e congruente com a duração razoável do processo judicial, apto a promover tais direitos fundamentais: afastou do ordenamento jurídico sul-africano a decisão eclesiástica de 2016 e, em consequência, propiciou efeito repristinatório em relação à decisão eclesiástica anterior, de 2015.

Demais disso, o acórdão em questão consiste em medida judicial necessária, isto é, indispensável. Necessária porquanto não havia à disposição da Divisão de Gauteng em Pretória da Corte Superior da África do Sul medida judicial igualmente adequada e, ao mesmo tempo, menos intrusiva na autonomia privada, na liberdade de religião e no direito geral de autodeterminação da Igreja Neerlandesa Reformada da África do Sul que pudesse alcançar a mesma finalidade, com a mesma eficácia, no sentido de evitar a discriminação negativa da comunidade LGBTQIA+. Necessária também pois, caso a medida judicial fosse menos intrusiva, o Poder Judiciário incorreria em déficit de proteção da comunidade LGBTQIA+.

Por outro lado, o acórdão de março de 2019 denota-se medida judicial proporcional em sentido estrito. As vantagens propiciadas à igualdade substancial, à orientação sexual e à identidade de gênero superam as desvantagens à liberdade de religião, à autonomia privada e à autodeterminação da Igreja.

Não seria justificável que o Poder Judiciário mantivesse, em termos absolutos, a autonomia da Igreja para fixar, a seu talante, as suas normas internas que disciplinam o casamento religioso e o desempenho de funções sacerdotais, porque imporia desmesurado grau de sacrifício ao projeto de vida, à vida privada, à intimidade familiar, ao bem-estar psicológico e à integridade moral dos membros da comunidade LGBTQIA+ filiados à Igreja, bem como ao sentido existencial mais profundo da convivência em comunidade eclesiástica.

Como o Sínodo-Geral da Igreja já havia adotado, no intervalo de cerca de um ano, duas decisões diametralmente opostas, deveria prevalecer, como de fato prevaleceu, a decisão de 2015, a título in dubio pro homine, porque era a decisão destituída de caráter discriminatório.

Não havia a possibilidade de que o Poder Judiciário adotasse decisão alternativa, cuja menor eficácia na proteção à isonomia substancial, à orientação sexual e à identidade de gênero fosse eventualmente compensada por nível menos intenso de mitigação da autonomia privada, da liberdade religiosa e da autodeterminação da Igreja.

De todo modo, o aresto em estudo não deve ser aplicado de forma indiscriminada. Ao realizar o cotejo entre o acórdão da Corte Superior da África do Sul de março de 2019 e as circunstâncias de determinado processo judicial, é preciso verificar se, na comunidade eclesiástica considerada, existem ou não demandas e reivindicações individuais e coletivas pela promoção dos direitos religiosos de pessoas LGBTQIA+.

Convém ter em mente o contexto cultural e religioso em que se insere a comunidade eclesiástica considerada, para se prevenir que a intervenção do Estado-Juiz represente carga coativa demasiada e a fim de se evitar que sirva de pretexto para que o grupo majoritário aumente a opressão das minorias sexuais e de gênero. Daí a importância de se aquilatar se, na comunidade eclesiástica em questão, existe abertura, mínima que seja, para a promoção de direitos fundamentais da comunidade LGBTQIA+ (perquirindo-se, por exemplo, se há movimentos internos para torná-la mais aberta à diversidade sexual e de gênero).

Em síntese, é imprescindível a avaliação criteriosa dos diversos atravessamentos (inclusive históricos, psicológicos, antropológicos, sociológicos, econômicos, culturais, religiosos e axiológicos) que envolvem as relações sociais e institucionais em determinada comunidade eclesiástica e ponderar os efeitos individuais e coletivos que a decisão judicial acarretará justamente sobre os grupos vulneráveis.

In: FROTA, H. A. da; BARROS, Renata F. de. Igualdade substancial, casamento religioso e sacerdócio por pessoas LGBTQIA+: análise do caso Gaum. Caderno de Direito e Políticas Públicas, Rio de Janeiro, v. 3, n. 1, jan.-dez. 2022, p. 36-39.

Leia o artigo completo: Igualdade substancial, casamento religioso e sacerdócio por pessoas LGBTQIA+: análise do caso Gaum.

Como citar a referência bibliográfica: FROTA, Hidemberg Alves da; BARROS, Renata Furtado de. Igualdade substancial, casamento religioso e sacerdócio por pessoas LGBTQIA+: análise do caso Gaum. Caderno de Direito e Políticas Públicas, Rio de Janeiro, v. 3, n. 1, p. 1-47, jan.-dez. 2022.





A crise do constitucionalismo global: propostas e reflexões.

Percebeu-se que o constitucionalismo global, para que assuma legitimidade democrática, adquira dimensão, multicultural, verdadeiramente universalista e congruente com as tessituras sociais, econômicas e culturais tanto do Norte Global quanto do Sul Global, e consista em ponto de partida para a reconstrução das instituições constitucionais de índole transnacional e regional e a alvorada de ordem constitucional global justa, em que prevaleçam a igualdade e a democracia substanciais, deve transcender as suas raízes históricas, modeladas pelos valores do neoliberalismo e do liberalismo cosmopolita, de forma que não mais se circunscreva à tônica nos direitos individuais de matriz liberal e deixe de constituir instrumento discursivo da promoção da ideologia neoliberal, da supremacia das relações de mercado, do conceito capitalista de propriedade e de relações de poder alicerçadas na hegemonia norte-americana e no colonialismo ocidental.

Na esteira, constatou-se que cabe ao constitucionalismo global abrir-se para novo campo de possibilidades, (a) acolhendo perspectiva crítica ante as limitações do liberalismo cosmopolita, as deficiências do paradigma de governança constitucional transnacional de orientação neoliberal e os efeitos negativos do neoliberalismo na facticidade, tais qual o aumento mundial da desigualdade social, da pobreza e da miséria e da degradação ambiental, e (b) pensando alternativas jurídico-constitucionais plausíveis de contraponto tanto ao neoliberalismo e ao colonialismo dele corolários, quanto ao recrudescimento do autoritarismo na contemporaneidade, fenômeno ilustrado pela ascensão de movimentos políticos quer de inspiração neofascista, quer de neoliberalismo nacionalista, quer de populismo antidemocrático.

Notou-se que um dos caminhos entrevistos, para que o constitucionalismo global continue pertinente nos dias atuais, é o da construção de pontos de interseção entre o Direito Constitucional e o Direito Internacional dos Direitos Humanos. Nesse passo, discute-se a formação de estrutura institucional de proteção de direitos humanos calçada no constitucionalismo global, a partir do diálogo jurisprudencial entre o Comitê de Direitos Humanos das Nações Unidas e Cortes de Proteção Regional dos Direitos Humanos (notadamente, o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos ‒ TEDH, a Corte Interamericana de Direitos Humanos ‒ Corte IDH e o Tribunal Africano dos Direitos do Homem e dos Povos ‒ TADHP).

Observou-se, por outro lado, que o constitucionalismo global permanecerá relevante, nesse período de multipolaridade, caso continue aberto para o diálogo multicultural. Realça-se a relevância de que a globalização do Direito Constitucional seja compreendida para além dos lindes tradicionais do constitucionalismo liberal, a fim de que não se assente em ilusória premissa de homogeneidade jurídico-cultural e leve em conta, de maneira crítica, (a) fenômenos da contemporaneidade que destoam desse modelo, (b) aspectos desconsiderados, pelas teorias majoritárias do constitucionalismo global, acerca da diversidade cultural planetária, ou (c) situações peculiares da experiência constitucional de determinada ordem jurídica interna ou doméstica que podem acarretar repercussão global.

Inferiu-se (nesse trilhar de perquirir-se como o constitucionalismo global influencia ordens constitucionais forjadas em sistemas culturais e constitucionais diversos do modelo ocidental e liberal e, ao mesmo tempo, é por eles influenciado, dentro do quadro mais amplo de investigar como valores e compromissos constitucionais concorrem e divergem entre si na intimidade das ordens estatais) a importância de que seja examinada a interação entre o constitucionalismo global e a diversidade cultural do Sul Global, exempli gratia, em ordens constitucionais da África, da Ásia, da América do Sul, da América Central e do Caribe, considerando que o constitucionalismo global, longe de ser mero produto da contemporaneidade pós-Guerra Fria, deita suas raízes nas manifestações de mundialização e uniformização jurídica ditadas pelos séculos de colonialismo e imperialismo levado a cabo pelas potências ocidentais.

Assinalou-se que o constitucionalismo global também poderá manter o seu lugar de fala na atualidade acolhendo linhas de pesquisa sobre experiências constitucionais que, conquanto, à primeira vista, pareçam sui generis e, de início, peculiares à determinada ordem constitucional interna ou doméstica, podem se tornar, com efeitos positivos ou negativos do ponto de vista da efetividade dos direitos fundamentais e direitos humanos, do regime democrático e do Estado de Direito, paradigmas reproduzidos por outras ordens estatais e se tornar objeto de discussão no plano internacional.

Acentuou-se que, para além da necessidade de que viceje postura crítica e ressignificadora na intimidade da dogmática do constitucionalismo global, tendo em mira o pluralismo constitucional e cultural e as variadas formas de intercâmbio jurídico-constitucional interestatal, transnacional e internacional, afigura-se indispensável a concretude desse projeto no campo da vivência política dos povos.

Enfatizou-se que o constitucionalismo global, na qualidade de espaço jurídico para onde se projetam princípios de base constitucional e em que eles alcançam envergadura internacional, transnacional e interestatal, como resposta funcionalista e pragmática aos fenômenos da globalização, da relativização da soberania dos Estados nacionais ou plurinacionais e da fragmentação do Direito Internacional, impende constituir-se no novo locus do poder constituinte, de sorte que os povos tenha a oportunidade de realizar a escolha política de se assenhorarem desse projeto, para que o processo decisório de jaez político-constitucional desenvolvido na esfera global adquira legitimidade democrática. Sob esse ângulo, deve-se ampliar a participação e o controle popular no que se refere aos processos (a) de harmonização do Direito Constitucional Interno ou Doméstico com as balizas do Direito Internacional e (b) de criação quer de normas de Direito Internacional de caráter ordinário (infraconstitucional), quer de normas internacionais secundárias (editadas pelas organizações internacionais).

Ressaltou-se que a questão social inerente ao constitucionalismo global precisa ser equacionada, primordialmente, no seio da polis, ou seja, no ambiente dedicado à arena política, o que implica expandir-se o espectro contemporâneo da polis, de maneira que abranja não apenas a esfera doméstica ou interna do Estado nacional ou plurinacional, mas também o campo das relações jurídicas transnacionais lato sensu, seja o espaço das relações interestatais ou intergovernamentais, seja o espaço supranacional, este composto por Estados-membros e cidadãos. Resplendeu-se que o deslocamento da polis para a seara jurídica supranacional importa o compartilhamento de responsabilidades entre os seus integrantes, demarcando-se a divisão de atribuições entre os Estados-membros e os cidadãos ou as coletividades que compõem aquele locus, a fim de que todos tenham papéis bem delimitados e estabeleçam entre si relações ativas, para além de funções meramente protocolares e simbólicas ou condutas passivas.

Ponderou-se que a autoridade, na tessitura das instituições de governança global (internacionais, regionais, transnacionais e supranacionais), deve não apenas (a) agir em harmonia com valores imanentes à dignidade da pessoa humana, aos direitos humanos, à equidade e à justiça e às demais matérias passíveis de serem consideradas de interesse público e endereçadas ao bem comum e (b) contemplar requisitos procedimentais e processuais relacionados ao controle, à fiscalização e à responsabilidade, mas também (c) atender a padrões democráticos e transparentes na lida com contestações tanto surgidas na intimidade organizacional quanto oriundas de atores externos, em que se incluem a permissão a contestações, o seu acolhimento e a formulação de respostas a elas.

In: FROTA, H. A. da. A crise do constitucionalismo global: propostas e reflexões. Revista Jurídica UNIGRAN, Dourados, v. 24, n. 48, p. 28-30, jul.-dez. 2022.

Leia o artigo completo: A crise do constitucionalismo global: propostas e reflexões.

Como citar a referência bibliográfica: FROTA, Hidemberg Alves da. A crise do constitucionalismo global: propostas e reflexões. Revista Jurídica UNIGRAN, Dourados, v. 24, n. 48, p. 17-33, jul.-dez. 2022.







A pena de morte automática e obrigatória no Caribe anglófono: raízes coloniais e jurisprudência internacional

Percebeu-se a atualidade da orientação jurisprudencial do Comitê de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas esposada nos casos Mwamba v. Zâmbia (Comunicação n.º 1.520/2006, § 6.3), julgado em 10 de março de 2010, Larrañaga v. Filipinas (Comunicação n.º 1.421/2005, § 7.2), julgado em 24 de julho de 2006, Rolando v. Filipinas (Comunicação n.º 1.110/2002, § 5.2), julgado em 3 de novembro de 2004, Kennedy v. Trindade e Tobago (Comunicação n.º 845/1998, § 7.3), julgado em 26 de março de 2002, e Thompson v. São Vicente e Granadinas (Comunicação n.º 806/1998, § 8.2), julgado em 18 de outubro de 2000, segundo a qual a pena de morte, quando imposta de forma obrigatória e automática, consiste em privação arbitrária da vida da pessoa humana, a atrair, por isso, o campo de incidência do artigo 6.º, n.º 1, in fine, do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (PIDCP), de 16 de dezembro de 1966, nas situações em que se aplica a pena capital à revelia quer das circunstâncias do acusado dotadas de índole pessoal, quer das circunstâncias imanentes ao crime analisado.

Notou-se que, apesar de tal constructo jurisprudencial remansoso do Comitê de Direitos Humanos da ONU ter mais de vinte anos de reiteração, ainda há flagrante resistência em sua observância nos ordenamentos jurídicos domésticos, a ponto (a) de permanecer vigente, em Trindade e Tobago, a Lei de Delitos contra a Pessoa (Lei 10 de 1925), cujo artigo 4.º preceitua que todas as pessoas condenadas por murder serão submetidas à pena de morte, e, (b) em São Vicente  e Granadinas, no rol de sanções penais do Código Criminal são-vicentino (consubstanciado no Capítulo 124 das Leis Revisadas de São Vicente e Granadinas), em seu artigo 23, remanescer, na alínea a, a referência expressa à pena de morte.

Constatou-se que, sob o prisma da jurisprudência internacional de Direitos Humanos, a questão da pena capital no Caribe de língua oficial inglesa recebeu aportes relevantes não só do Comitê de Direitos Humanos da ONU, atrás mencionados, como também da Corte Interamericana de Direitos Humanos, sobretudo nos acórdãos paradigmáticos dos casos Hilaire e Boyce.

Lembrou-se que a inconvencionalidade do caráter automático e obrigatório da pena de morte foi objeto de análise de mérito, pela primeira vez, pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, no caso Hilaire, Constantine e Benjamin e outros versus Trindade e Tobago, em sentencia (acórdão) de 21 de junho de 2002, quando a Corte IDH, ao se debruçar sobre o retrocitado artigo 4.º da Lei dos Delitos contra a Pessoa de 1925, de Trindade e Tobago, determinou (§ 223, itens 8 e 9) ao Estado trinitário-tobagense (a) “abster-se de aplicar a Lei de Delitos contra a Pessoa de 1925”, (b) modificá-la, “em prazo razoável”, com o intento de adequá-la “às normas internacionais de proteção dos direitos humanos, nos termos expostos no parágrafo 212” (tradução livre nossa) do aresto em comento, e, após tal reforma legislativa, (c) tramitar de novo os processos penais pertinentes aos vinte e oito jurisdicionados que, nos mencionados autos, litigavam contra o indigitado Estado caribenho, condenados em relação aos quais foram aplicadas penais capitais, de maneira compulsória, sem a possibilidade de comutação.

Acentuou-se que a previsão, pela legislação penal, de hipóteses de homicídio intencional ou doloso lato sensu (assim compreendidos os modos de privação, de cunho intencional e ilícito, da vida de determinada pessoa) devem ser reconhecidas e contempladas por meio de tipos penais a espelharem as distintas gravidades de cada fato, uma vez que o enquadramento penal da situação fática é norteado pela conjugação de elementos peculiares ao respectivo contexto, que definirão o grau de gravidade da conduta correspondente (tais quais, a especificidade da relação entre o autor do fato e a vítima, o móvel da atuação criminosa, a circunstância em que o ilícito penal foi praticado e os meios empregados pelo sujeito ativo do delito), de sorte que seja estatuída, pelo Direito Penal Positivo, “uma graduação na gravidade dos fatos que corresponda a uma graduação nos níveis de severidade da pena aplicável” (tradução livre nossa).

Detectou-se, conforme as ponderações da Corte IDH no caso Hilaire e outros, reforçadas no caso Boyce, a existência de processo penal arbitrário no Caribe anglófono, assinalado pela imposição mecânica e genérica da pena de morte para toda pessoa declarada, pelo Poder Judiciário, culpada pela prática de homicídio doloso, no bojo de feito penal cujo deslinde ocorre à revelia seja das circunstâncias peculiares ao acusado, seja das circunstâncias específicas do crime por ele praticado, conjuntura processual penal na qual se sobressai a impossibilidade jurídica de que tal sanção penal seja comutada por meio de revisão judicial.

Frisou-se que o entendimento da Corte Interamericana de Direitos Humanos consignado no caso Hilaire, Constantine e Benjamin e outros versus Trindade e Tobago foi ratificado pela Corte IDH no caso Boyce e outros versus Barbados, nos §§ 57 a 63 da sua sentencia de 20 de novembro de 2007, ao se debruçar sobre o artigo 2.º da Lei de Delitos contra a Pessoa de Barbados de 1994, segundo o qual toda pessoa condenada por murder (homicídio doloso ou intencional em sentido amplo) será sentenciada com pena de morte.

Denotou-se que o posicionamento da Corte Interamericana de Direitos Humanos sobre o jaez arbitrário da pena de morte automática e obrigatória, expendido, de forma paradigmática, seja no caso Hilaire, Constantine e Benjamin e outros versus Trindade e Tobago, seja no caso no caso Boyce e outros versus Barbados, constitui jurisprudência consolidada, refletida no julgamento do caso Dacosta Cadogan versus Barbados (sentencia de 24 de setembro de 2009, §§ 50 a 75), em que a Corte IDH reiterou a inconvencionalidade da pena capital compulsória cominada pelo artigo 2.º da Lei de Delitos contra a Pessoa de Barbados de 1994.

Consignou-se que, quanto ao repúdio à pena de morte, pela jurisprudência iterativa da Corte Interamericana de Direitos Humanos, destaca-se, ainda, o controle de convencionalidade efetuado pela Corte IDH relativamente ao Código Penal da Guatemala (Decreto n.º 17-73, de 27 de julho de 1973), em seus artigos 175 (delito de “plagio o secuestro”) e 201 (delito de “violación calificada”).

Remarcou-se que a matriz jurídica e fonte histórica da pena de morte compulsória, genérica e automática, imanente à legislação penal dos Estados caribenhos de língua inglesa, deve-se, conforme recorda, no Comitê Judicial do Privy Council do Reino Unido, o voto proferido pelo Lorde Leonard Hubert Hoffman no julgamento levado a efeito em 7 de julho de 2004, em Boyce & Anor v R (Barbados), à influência residual da legislação penal britânica do século XIX, corporificada no artigo 3.º da Lei de Delitos contra a Pessoa de 1828, reiterado pelo artigo 1.º da posterior Lei de Delitos contra a Pessoa, de 1861, dispositivos legais que determinavam a aplicação da pena de morte em caso de homicídio doloso em sentido amplo (rememore-se, delito de murder).

Recordou-se que, de acordo com o retrospecto delineado pelo Lorde Hoffman, em meados do século XX, na Grã-Bretanha, a Parte II da Lei de Homicídio de 1957 restringia a pena de morte a hipóteses de homicídio doloso (lato sensu) classificadas por esse diploma legislativo como “capitais”. Todavia, a Lei de Homicídio Doloso de 1965 (Abolição da Pena de Morte) não só revogou o artigo 1.º da Lei de Delitos contra a Pessoa de 1861, como também aboliu a pena capital para todas as circunstâncias relativas a murder.

Inferiu-se que, em que pese, no Reino Unido da Grã-Bretanha e Irlanda do Norte, no decorrer das décadas de 1960 e 1970, a legislação de crimes de homicídio doloso em sentido amplo tenha se tornado formalmente abolicionista (abolicionista de jure), a legislação penal do Caribe anglófono, à época, manteve-se inerte, perpetuando a previsão de pena de morte obrigatória para os delitos de murder, eco remanescente da legislação britânica novecentista, devido à singular característica da maioria das Constituições dos Estados independentes do Caribe de língua oficial inglesa, as quais mantiveram, em caráter perene, “cláusulas de exclusão” (saving clauses) de caráter geral, cuja extirpação do Direito Constitucional Positivo exige processo dificultoso de reforma constitucional e as quais, em geral, interditam o controle de constitucionalidade das normas originalmente criadas pelo Direito Colonial, é dizer, impossibilitam o Poder Judiciário de declarar não recepcionada, pela ordem constitucional do Estado soberano correspondente, normas jurídicas cuja vigência se iniciou antes que a respectiva nação caribenha de língua inglesa alcançasse a sua emancipação política da ex-metrópole britânica ou estabelecesse a nova ordem constitucional, no caso de segunda Constituição pós-independência.

Constatou-se que as características comuns à maioria dos Estados soberanos de língua inglesa do Caribe quatripartem-se (1) na adaptação do modelo britânico de democracia parlamentarista, com a criação de sistema bicameral, temperado com características próprias dos Estados caribenhos, e a codificação de normas convencionais, é dizer, de normas de matriz consuetudinária originalmente forjadas no parlamentarismo britânico, (2) na elaboração de Constituições pós-independência de caráter escrito e codificado, imbuídas quer de Bill of Rights (Carta de Direitos Fundamentais), quer de cláusulas que permitem divisar a separação de poderes, quer de dispositivos que recepcionaram in totum o Direito Colonial na ordem constitucional soberana e o imunizam do controle de constitucionalidade, (3) na perpetuação da pena de morte obrigatória, (4) na manutenção do Comitê Judiciário do Privy Council do Reino Unido, na condição de Corte Final de Apelação ou Tribunal de Última Instância, e (5) na possibilidade de se provocar a atuação da Corte Interamericana de Direitos Humanos e do Comitê de Direitos Humanos das Nações Unidas.

Viu-se que, a despeito de as “cláusulas de exclusão” terem dado vazão ao propósito ponderável, compatível com o primado da manutenção da segurança jurídica, de salvaguardar a continuidade de ordenamento jurídico após a independência política dos atuais Estados soberanos do Caribe de língua oficial inglesa e serem o reflexo da compreensível preocupação do legislador constitucional de prevenir a gênese de retrocessos legislativos de cariz autoritário e afrontosos à Bill of Rights (Carta de Direitos Fundamentais) da respectiva Carta Magna, as saving clauses, como se percebe no caso da pena de morte obrigatória e automática, ocasionam a petrificação da respectiva ordem jurídica caribenha, atrelando-a a normas jurídicas legislativas e consuetudinárias hoje consideradas retrógradas, sob o prisma da proteção internacional dos direitos humanos e do constitucionalismo contemporâneo, e que já foram, em décadas pretéritas, expungidas do ordenamento jurídico da antiga metrópole britânica.

Alertou-se que a tendência contemporânea do Caribe de matriz jurídica anglo-saxônica direcionada ao abolicionismo, principalmente, pela abolição de facto (ausência ou redução significativa de condenações penais e execuções por pena de morte), afigura-se frágil, uma vez que, conforme se depreende do mencionado exemplo filipino, países que tradicionalmente acolheram a pena de morte propendem a ser palco de influentes movimentos políticos a militarem para a sua restauração, mesmo quando abolida formalmente, como é o caso das Filipinas. O fenômeno do endurecimento penal experimentado pelo Caribe de língua oficial inglesa na década de 2000, atrás relatado, é sintoma de que, no Caribe anglófono, pode recrudescer, no futuro, o quantitativo quer de sentenças penais condenatórias a determinarem a aplicação da pena de morte, quer de execuções da pena capital.

Esclareceu-se que a controvérsia se a Corte Caribenha de Justiça teria o condão de fomentar o avanço da abolição de facto e, mormente, de jure da pena de morte no Caribe anglófono tem como substrato a peculiaridade de que a CCJ possui natureza híbrida, na medida em que atua tanto como Tribunal Internacional quanto como Tribunal de Última Instância.

Explicou-se que, na qualidade de Corte Internacional, a CCJ desempenha a competência jurisdicional originária, de observância compulsória, primordialmente na condição de guardiã e intérprete definitiva do Tratado de Chaguaramas, de 4 de julho de 1973, que estabeleceu a Comunidade Caribenha e o Mercado Comum (Caribbean Community and Common Market), mais conhecida como CARICOM. O Tratado Revisado de Chaguaramas, de 5 de julho de 2001, redirecionou o foco econômico da CARICOM, com o desiderato mais ousado de viabilizar a formação não mais de mercado comum, e sim de mercado único caribenho.

Dilucidou-se que, por outro lado, na condição de Tribunal de Última Instância, a competência recursal da Corte Caribenha de Justiça foi concebida com o propósito político de completar o processo ainda em curso de descolonização e decolonização judiciais do Caribe anglófono, de maneira que a instância máxima do Poder Judiciário dos Estados caribenhos de língua inglesa fosse a CCJ, e não mais o Comitê Judiciário do Privy Council, órgão jurisdicional britânico também referido pela sigla JCPC (Judicial Committee of the Privy Council), a quem coube, dos séculos XVI a XX, processar e julgar apelações oriundas de Tribunais Coloniais, inclusive do Caribe, o qual ainda possui papel relevante como Corte Final de Apelação de parcela de Estados vinculados à “Commonwealth of Nations” (antiga Comunidade Britânica de Nações), associação de Direito Internacional presidida pela Coroa britânica, composta, em sua maioria, por Estados nacionais soberanos que integraram o extinto Império britânico.

Destacou-se que, devido a processos dificultosos de reforma constitucional, referendos fracassados e a ausência tanto de interesse político quanto de consenso social, perdura a circunstância de que, apesar de os quinze membros plenos da CARICOM se sujeitarem à jurisdição da Corte Caribenha de Justiça, na qualidade de Tribunal Internacional, desse elenco apenas Barbados, Belize, Dominica e Guiana adotam a CCJ como Corte Final de Apelação, porquanto Antígua e Barbuda, Bahamas, Granada, Jamaica, Santa Lúcia, São Cristóvão e Névis, São Vicente e Granadinas e Trindade e Tobago permanecem, em sua organização judiciária, atrelados ao Comitê Judiciário do Privy Council como Tribunal de Última Instância.

Evidenciou-se que, na sua jurisprudência da década de 2010, o Comitê Judiciário do Privy Council, como Tribunal de Última Instância da maioria dos Estados independentes do Caribe de língua oficial inglesa, propendeu (a) a se abster de invalidar, sob o prisma do Direito Constitucional Positivo, a parcela das leis penais que, preexistentes à independência política do respectivo Estado caribenho, encerrasse tipos penais imbuídos de preceitos secundários a preverem a aplicação da pena de morte de forma compulsória (normas jurídicas pré-independência a prescreverem a imposição da pena capital a título de única pena cabível, sem a possibilidade de eventual comutação), (b) a limitar o controle incidental de constitucionalidade, pelo próprio JCPC, à gama de preceitos secundários a cominarem a pena de morte por meio de dispositivos legais que ingressaram na ordem jurídica interna após a independência do Estado caribenho demandado e (c) a devolver os autos ao Estado de origem, determinando a comutação de penas de morte, quer porque aplicadas com espeque em leis penais pós-independência declaradas inconstitucionais pelo JCPC (controle incidental de constitucionalidade), quer porque referentes a réus com deficiência mental (ou a determinar o reexame da matéria pelo Poder Judiciário local, para que se pronunciasse sobre a alegada deficiência mental do réu), quer porque atinentes a apenados com mais de cinco anos no “corredor da morte”, para que o próprio Poder Judiciário do Estado recorrido, por meio da sua Corte de Apelação ou órgão judiciário equivalente, procedesse à prolação de nova sentença penal. Na década de 2010, no que se refere à pena de morte automática e obrigatória, preponderaram julgados referentes à República de Trindade e Tobago.

Notou-se que a jurisprudência do Comitê Judiciário do Privy Council, ao longo da década de 2010, evitou chancelar a interpretação sistemática da Constituição trinitário-tobagense de 1976, exegese que propiciaria margem de discricionariedade judicial à aplicação da pena de morte, caso houvesse sido preservado o constructo pretoriano hasteado no caso Roodal, quando o JCPC ensaiou virada em sua jurisprudência que seria, no entanto, rechaçada em acórdãos subsequentes.

Sublinhou-se, no que se refere à polêmica em torno do caráter automático e obrigatório da pena de morte na tessitura jurídica dos Estados independentes do Caribe de língua oficial inglesa, que a Corte Caribenha de Justiça, na década de 2010, embora não tenha se deparado com o quantitativo de casos concretos enfrentados, em tal decênio, pelo Comitê Judiciário do Privy Council, diferenciou-se do JCPC pela linha de argumentação marcadamente decolonial, ao realizar o paradigmático julgamento em conjunto, em 27 de junho de 2018, dos casos Nervais and The Queen e Severin and The Queen.

Depreendeu-se que, nos casos Nervais e Severin, a maioria da Corte Caribenha de Justiça invocou o artigo 4.º, n.º 1, da Ordem de Independência de Barbados, de 30 de novembro 1966, que preconizara a conformação quer à antecedente Lei de Independência de Barbados, quer àquela subsequente Ordem de Independência, de todas as leis existentes, incluindo-se as que já existiam no ordenamento jurídico. Resplendeu-se que, para a maioria formada na Corte Caribenha de Justiça nos casos Nervais e Severin, conquanto essa interpretação constitucional não pudesse remover as máculas do regime colonial, encontrava-se consentânea com o anseio da sociedade de que as leis se ajustassem à Constituição, ante o seu cariz de lei suprema da Nação barbadense, e não se calcificassem, como se estivessem a refletir, ad aeternum, o panorama jurídico do período colonial.

Detectou-se que, de acordo com essa perspectiva constitucional, abraçada pelo voto majoritário nos casos Nervais e Severin, a obrigatoriedade da pena de morte, divisada pelo artigo 2.º da Lei de Delitos contra a Pessoa de 1868, não fora recepcionada pela ordem constitucional de 1966, uma vez que o artigo 4.º, n.º 1, da Ordem de Independência de Barbados, de 30 de novembro de 1966, impusera a conformação das normas jurídicas coloniais à Constituição barbadiana que surgiu no seio daquela Ordem de Independência.

Observou-se que a supremacia da Constituição barbadiana seria beneficiada pela clivagem levada a efeito pelo artigo 4.º, n.º 1, daquela Ordem de Independência, que determinava a conformação das normas jurídicas coloniais ao disposto não só na Lei de Independência de Barbados, como também na supracitada Ordem de Independência, cujo conteúdo global abrangia, em seus anexos, a própria Constituição do novo Estado caribenho, de sorte que conformar o Direito Colonial, de forma explícita, à Ordem de Independência implicaria, de maneira implícita, harmonizá-lo com a Constituição veiculada em tal Ordem.

Resplandeceu-se que, partindo da premissa de que a ordem constitucional de 1966, por meio do filtro encaixilhado no artigo 4.º, n.º 1, da Ordem de Independência de 1966, depurara a pena de morte divisada pelo artigo 2.º da Lei de Delitos contra a Pessoa de Barbados de 1868 de índole compulsória, convolando-a em pena de morte doravante discricionária (sujeita ao juízo discricionário do Poder Judiciário), a Corte Caribenha de Justiça concluiu que o artigo 2.º da Lei de Delitos contra a Pessoa de Barbados de 1994 não estava imunizado pela cláusula geral de exclusão do Direito Colonial encastoada no artigo 26 da Constituição de Barbados de 1966.

Obtemperou-se que os casos Nervais e Severin se diferenciam do julgamento, em 8 de novembro de 2006, pela Corte Caribenha de Justiça, do caso Boyce. No julgado da década de 2000, a CCJ se devotou a expender balizas pretorianas, para que o Privy Councilde Barbados, como órgão colegiado do Poder Executivo, pudesse assegurar equidade processual ao réu sentenciado com pena de morte, ao assim o BPC proceder no desempenho da sua atribuição de assessoramento superior de recomendar ou não ao Governador-Geral o exercício da potestade da misericórdia, por meio da eventual comutação, pelo governante, da pena capital, em circunstâncias em que são recorrentes marchas e contramarchas, enquanto aquele que se encontra “no corredor da morte” aguarda o deslinde de recursos judiciais no âmbito do Poder Judiciário local e do Comitê Judiciário do Privy Council do Reino Unido, da apreciação de suas petições no seio do sistema interamericano de proteção dos direitos humanos e/ou de pleitos perante a Chefia do Poder Executivo.

Enfatizou-se que, no caso Boyce, a Corte Caribenha de Justiça seguiu os passos da jurisprudência do Comitê Judiciário do Privy Council de mitigar a repercussão negativa da cláusula geral de exclusão sobre os direitos fundamentais dos condenados à pena de morte, ao delinear limitações temporais para o processamento e julgamento de recursos internos e garantir ao apenado o direito de impugnar a sua condenação à pena capital perante os sistemas interamericano e internacional de proteção dos direitos humanos.

Contrastou-se que, nos casos Nervais e Severin, a Corte Caribenha de Justiça deu passo além daquele que o Comitê Judiciário do Privy Council ensaiou no caso Roodal, para depois o próprio JCPC revertê-lo em sua jurisprudência posterior, centrada no caso Matthew, ou seja, a CCJ, por meio do voto majoritário em Nervais e Severin, formulou construção jurisprudencial que transcende o passo anterior dado por ela, no caso Boyce, de se pronunciar sobre os direitos processuais e procedimentais dos condenados à pena de morte, na medida em que, nos casos Nervais e Severin, a CCJ dedicou-se a edificar doutrina judicial própria, diferenciada daquela do JCPC e dotada de tonalidades decoloniais, que, mediante a interpretação sistemática do Direito Constitucional Positivo, o manejo do que se chama, no Direito brasileiro, de instituto da recepção, quanto à legislação infraconstitucional oriunda do período colonial, e o cotejo com o Direito Internacional dos Direitos Humanos, propicia a superação do efeito imunizante da cláusula geral de exclusão sobre a legislação penal que preceitua a aplicação da pena de morte em termos automáticos e obrigatórios e, por conseguinte, assegura a discricionariedade do Poder Judiciário do Caribe de língua oficial inglesa, a fim de que, de maneira independente, possa aquilatar a aplicação da pena de morte, de forma individualizada, conforme as circunstâncias do crime e do réu.

Frisou-se que o julgamento, pela Corte Caribenha de Justiça, dos casos Nervais e Severin clarifica a plausibilidade, vaticinada pela literatura especializada, de que a CCJ consubstancie locus de irradiação de nova jurisprudência para o Caribe de língua oficial inglesa, por meio da qual seja sedimentado sistema de precedentes de defesa dos direitos humanos em face da pena de morte obrigatória e de outras questões caras à salvaguarda da dignidade da pessoa humana, de sorte que, revestida da legitimidade de Tribunal de Última Instância a exprimir, de modo genuíno, a identidade caribenha, possa concluir o processo de descolonização judicial do Caribe anglófono, assentar jurisprudência regional de viés decolonial (não só descolonizar, mas pensar em termos decoloniais) e fortalecer a afirmação e efetividade dos direitos humanos na Comunidade Caribenha de modo geral.

In: FROTA, H. A. da. A pena de morte automática e obrigatória no Caribe anglófono: raízes coloniais e jurisprudência internacional. O Direito, Lisboa, v. 154, n. 4, 2022, p. 707-715.

Leia o artigo completo: A pena de morte automática e obrigatória no Caribe anglófono: raízes coloniais e jurisprudência internacional.

Como citar a referência bibliográfica: FROTA, Hidemberg Alves da. A pena de morte automática e obrigatória no Caribe anglófono: raízes coloniais e jurisprudência internacional. O Direito, Lisboa, v. 154, n. 4, p. 667-726, 2022.

A liberdade de religião nas Constituições brasileiras de 1824 a 1988


Constatou-se que a Constituição Política do Império do Brasil, de 25 de março de 1824, estatuiu a religião católica apostólica romana como a religião oficial do Estado, sem possibilitar liberdade plena para o exercício das demais manifestações religiosas, uma vez que restritas ao culto em ambiente doméstico ou em ambiências privadas, sediadas em casas destinadas a tanto, proibida a existência de templos não católicos apostólicos romanos com aparência externa (artigo 5.º). Constatou-se que a Constituição do Império do Brasil também limitava o exercício da liberdade de religião ao vedar a eleição para a Câmara de Deputados da Assembleia Geral no tocante àqueles que não professassem a religião estatal (artigo 95, inciso III). Embora encerrasse cláusula expressa a proibir perseguição religiosa, possibilitava a persecução estatal por motivo de religião em detrimento de quem, na óptica do Estado brasileiro, estivesse a desrespeitar a religião oficial ou a ofender a moral pública (artigo 179, inciso V). Notou-se que, entre as atribuições precípuas do Imperador, na qualidade de Chefe do Poder Executivo (artigo 102, caput, 1.ª parte), figuravam as de realizar a nomeação de bispos católicos romanos (artigo 102, inciso II, 1.ª parte) e de dar provimento aos “benefícios eclesiásticos” (artigo 102, inciso II, 1.ª parte), bem como de decidir pela concessão ou não de beneplácito a Constituições Eclesiásticas, tais quais os Decretos de Concílios e as Letras Apostólicas, que não fossem contrárias à Constituição Imperial, e pela aprovação ou não das Assembleias Eclesiásticas, caso contivessem cláusulas gerais (artigo 102, inciso XIV). Percebeu-se que, apesar das relevantes restrições ao exercício da liberdade de religião, a Constituição do Império do Brasil teve a virtude de impedir que a religião obstasse a naturalização de estrangeiros (artigo 6.º, inciso V).

Inferiu-se que, a despeito de a primeira Constituição brasileira republicana e democrática, promulgada em 24 de fevereiro de 1891, haver mantido a tradição da Constituição Imperial de não fazer referência explícita tanto à liberdade de consciência, quanto à objeção de consciência, avançou, de forma significativa, na promoção da liberdade religiosa, em cotejo com a Constituição Imperial de 1824, na medida em que não só vedou a União e os Estados-membros de embaraçarem o exercício de qualquer culto religioso, como também evitou a chancela constitucional a políticas públicas de fomento à determinada confissão religiosa, ao proibir, de modo expresso, que os entes estatais estabelecessem ou subvencionassem instituições religiosas ou cultivassem com elas qualquer vínculo de dependência ou aliança, sem prejuízo da representação diplomática do Estado brasileiro no âmbito da Santa Sé (artigo 11, item 2, c/c artigo 72, § 7.º). Sob o prisma da liberdade de religião como limite à competência tributária das pessoas políticas de Direito Público Interno, a Constituição da República de 1891 (artigo 11, n.º 2), apesar de não haver se reportado, de molde explícito, ao instituto da imunidade tributária dos templos de qualquer culto, vedou o Estado brasileiro de “embaraçar o exercício de cultos religiosos”. Depreendeu-se que a Carta Maior da Primeira República facultou aos indivíduos e às confissões religiosas o direito de exercerem o próprio culto, de forma pública e livre, e, para tanto, de se associarem e adquirirem bens, desde que fosse observada a legislação do Direito Comum (artigo 72, § 3.º). Constatou-se que, na Lei Maior de 1891, o caráter laico do Estado brasileiro se patenteou, ante (a) a proibição de direitos civis e políticos serem limitados por motivos de crença ou função (artigo 72, § 28), bem como à vista (b) do caráter leigo do ensino público, (c) da natureza secular e estatal (in casu, municipal) dos cemitérios públicos e (d) do direito de que cada culto religioso praticasse os seus ritos relativamente aos seus profitentes, desde que não ofendessem os preceitos legais e as normas da moralidade pública da época (artigo 72, § 5.º), o que, todavia, tornava as comunidades e templos religiosos vulneráveis, mais uma vez, à apreciação, pelo aparelho estatal, de conceitos indeterminados sobre a moral pública. Denotou-se, na Carta Magna de 1891, como igualmente deletéria à liberdade de religião, a proibição, em termos absolutos, de que qualquer motivo ou função (inclusive de cariz religioso) fosse invocado para o não cumprimento de deveres cívicos (artigo 72, § 28), a ponto de haver encastoado a sanção de perda da totalidade dos direitos políticos daqueles que almejassem se isentar, por razão religiosa, de ônus previsto em diploma legal federal, ou seja, “nas leis da República” (artigo 72, § 29). Percebeu-se, ainda, que a Constituição da Primeira República, no plano do Direito de Família, revelou-se deficitária, ao unicamente reconhecer, em seu artigo 72, § 4.º, o casamento civil, sem propiciar efeitos civis ao matrimônio religioso.

Notou-se que a segunda Constituição brasileira republicana e democrática, promulgada em 16 de julho de 1924 (BRASIL, 2020d), seguiu os passos e foi além da Constituição de 1891, sua antecessora: (a) Vedou não só à União e aos Estados-membros, como também aos Municípios e ao Distrito Federal ações estatais destinadas a “estabelecer, subvencionar ou embaraçar o exercício de cultos religiosos” (artigo 17, inciso II). (b) Conquanto, em regra, interditasse privações de direito por razões de convicção de jaez filosófico, político ou religioso, anuiu com a perda dos direitos políticos, em caso de isenção de ônus ou serviço que a lei impusesse aos brasileiros, “quando obtida por motivo de convicção religiosa, filosófica ou política” (artigo 113, item 4, c/c artigo 111, letra c). (c) Em que pese haver prescrito a inviolabilidade da “liberdade de consciência e de crença” e garantido “o livre exercício dos cultos religiosos” – foi a primeira Carta Magna brasileira com explícita referência à liberdade de consciência –, manteve a ressalva de viabilizar a persecução estatal nessa seara, caso o Poder Público reputasse que certo exercício da liberdade de consciência e religiosa afrontaria a ordem pública e os bons costumes (artigo 113, item 5), dispositivo constitucional a prosseguir com a tradição do Direito Constitucional Positivo pátrio de expor os profitentes de determinada fé a concepções indeterminadas de moralidade pública. (d) Preservou a índole secular e estatal (municipal) dos cemitérios e a liberdade de que todos os cultos religiosos praticassem, quanto aos seus crentes, os seus ritos respectivos, com a inovação de permitir às associações religiosas manterem cemitérios particulares, sob a “fiscalização das autoridades competentes” e com o impedimento de recusa à sepultura onde se ausentassem cemitérios seculares (artigo 113, n.º 5).

Detectou-se que a Constituição de 1934 inovou, ainda, nestes aspectos: (a) Proscreveu privilégios e distinções por razões, entre outras, de “crenças religiosas” (artigo 113, item 1). (b) Consentiu com a assistência religiosa em estabelecimentos oficiais (a exemplo de unidades militares, hospitalares e penitenciárias, contudo, prestada, de forma privativa, por “sacerdotes brasileiros natos”, em caso de instalações militares), desprovida de ônus ao erário e proibida a coação dos (ou o constrangimento aos) assistidos (artigo 113, item 6). (c) Vislumbrou, ladeando o casamento civil, o casamento religioso com efeitos civis, desde que, novamente, o rito não contrariasse a ordem pública nem os bons costumes e, para fins de reconhecimento civil, houvesse a observância, pela autoridade civil, quando da “habilitação dos nubentes”, tanto dos impedimentos quanto do processo de oposição delineados pela lei civil, com a posterior inscrição no Registro Civil (artigo 146). (d) Facultou, nas escolas públicas de nível primário, secundário, profissional e normal, o ensino religioso, que deveria ser ministrado à luz dos “princípios da confissão religiosa do aluno manifestada pelos pais ou responsáveis” (artigo 153). (e) Além disso, a Constituição Federal de 1934, em seu artigo 113, item 5, inovou, igualmente, ao conferir, na forma da lei civil, personalidade jurídica às associações religiosas em geral.

Depreendeu-se que a Constituição Federal de 1934 consolidou o paradigma brasileiro de Estado laico, esboçado pela Constituição Federal de 1891, e serviu de paradigma para projetos constitucionais posteriores.

Verificou-se que a Constituição dos Estados Unidos do Brasil de 1937 (Constituição do Estado Novo, a Constituição Polaca), no que concerne à liberdade religiosa, guardou sintonia com as inovações acrescentadas pelas Constituições democráticas de 1891 e 1934 e se denotou, nesse aspecto, continuadora da mesma matriz de constitucionalismo: (a) Proibiu a União, os Estados-membros, o Distrito Federal e os Municípios de estabelecerem, subvencionarem ou embaraçarem “o exercício de cultos religiosos” (artigo 32, alínea b). (b) Cominou a perda dos direitos políticos, em caso de “recusa, motivada por convicção religiosa, filosófica ou política, de encargo, serviço ou obrigação imposta por lei aos brasileiros” (artigo 119, alínea b). (c) Assegurou o exercício livre e público de cultos religiosos em geral, inclusive mediante o usufruto do direito de associação e de aquisição de bens, desde que, novamente, contempladas, de um lado, as disposições irradiadas pelo Direito Comum e, de outra banda, as exigências defluentes seja da ordem pública, seja dos bons costumes (artigo 122, n.º 4). (d) Conferiu aos cemitérios caráter estritamente secular e municipal, não mais prevendo-se, na ordem constitucional pátria, a existência de cemitérios confessionais (artigo 122, n.º 5). (e) Facultou o ensino religioso nas escolas de âmbito primário, normal e secundário, contanto que não fosse compulsória nem aos educadores nem aos educandos (artigo 133).

Inferiu-se que o único caráter, de fato, positivamente inovador da Constituição de 1937 ficou por conta do direito dos operários a feriados não apenas civis, mas também religiosos, conforme os limites demarcados pelas “exigências técnicas da empresa” e a “tradição local”, na esteira do artigo 137, alínea d, daquela Lei Maior.

Notou-se que a Constituição dos Estados Unidos do Brasil de 1946 seguiu a mesma senda das suas predecessoras e sedimenta, na ordem constitucional do novo regime democrático, normas trazidas a lume pelas Constituições Republicanas pretéritas: (a) Permaneceu a vedação de que a União, os Estados-membros, o Distrito Federal e os Municípios estabelecessem ou subvencionassem cultos de índole religiosa, ou viessem a lhes embaraçar o exercício (artigo 131, inciso II). (b) Manteve a inviolabilidade da liberdade de consciência e de crença e a assecuração do “livre exercício dos cultos religiosos”, com a similar e questionável ressalva quanto aos que contrariassem, sob a óptica do Estado brasileiro, “a ordem pública ou os bons costumes” (artigo 141, § 8.º). (c) Embora obstasse a privação de direitos por motivos religiosos, filosóficos ou políticos, preservou a potestade de o Poder Público impor a perda de direitos individuais, caso se invocassem razões de ordem religiosa, filosófica ou política, “para se eximir de obrigação, encargo ou serviço impostos pela lei aos brasileiros em geral”, ou, ainda, para se recusar os que a Constituição de 1946 estabelecesse em substituição daqueles deveres, “a fim de atender escusa de consciência” (artigo 141, § 8.º). (d) Fraqueou aos brasileiros a continuidade da assistência religiosa no seio das Forças Armadas e a estendeu, de forma ampla, aos “estabelecimentos de internação coletiva” em geral (nessa segunda hipótese, mediante a solicitação dos interessados ou dos seus representantes legais), com a cautela, em ambas as hipóteses (tanto a de âmbito militar quanto a da internação coletiva), de novamente o Direito Constitucional Positivo proscrever o eventual constrangimento das pessoas assistidas (artigo 141, § 9.º). (e) Ratificou o cariz secular e estatal (municipal) dos cemitérios, a permissão de que todas as confissões religiosas neles praticassem os seus ritos e a possibilidade de que, nos termos da lei, associações religiosas mantivessem cemitérios particulares (artigo 141, § 10). (f) Estendeu aos trabalhadores em geral (não só aos operários) o gozo não apenas de feriados civis, como também de feriados religiosos, consoante as tradições locais, com a mesma condicionante anterior de que o usufruto respeitasse os limites dimanados “das exigências técnicas das empresas” (artigo 157, inciso VI). (g) Reiterou a equivalência do casamento religioso ao matrimônio civil, se fossem “observados os impedimentos e as prescrições da lei”, assim o requeresse seja o celebrante, seja qualquer outro interessado, e contanto que o ato fosse inscrito no respectivo Registro Público (artigo 163, § 1.º). Alternativamente, na hipótese de haver sido celebrado matrimônio religioso sem as formalidades divisadas por aquele § 1.º do mesmo artigo 163, facultou a concessão de efeitos civis ao casamento religioso, se inscrito no Registro Público correspondente, “a requerimento do casal” e por meio da “prévia habilitação perante a autoridade competente” (artigo 163, § 2.º). (h) Manteve, em caráter facultativo, o ensino religioso em estabelecimentos oficiais, o qual deveria ser ministrado em consonância com a confissão religiosa esposada pelo aluno e “manifestada por ele”, se fosse capaz, “ou pelo seu representante legal ou responsável” (artigo 168, inciso V). (i) Inovou, ao proibir, de forma manifesta, a União, os Estados-membros, o Distrito Federal e os Municípios de lançarem “impostos sobre templos de qualquer culto”, ressalvada a “colaboração recíproca em prol do interesse coletivo” (artigo 31, inciso V, alínea b).

Conclui-se que a Constituição da República Federal do Brasil de 1967, quanto à liberdade religiosa, reiterou normas positivadas pelas Constituições Republicanas anteriores. Ad exemplum, a fórmula da liberdade de consciência e de crença positivada no artigo 141, § 7.º, da Constituição Federal de 1946, restou, em essência, reproduzida pelo artigo 150, § 5.º, da Constituição Federal de 1967 e preservada no artigo 153, § 5.º, da Emenda Constitucional n.º 1/1969. Assinalou-se que a Emenda Constitucional n.º 1/1969 foi o último texto constitucional a condicionar, de forma explícita, em seu artigo 153, § 8.º, o exercício da liberdade de religião à moldura da ordem pública e dos bons costumes. Remarcou-se que a proibição de discriminação baseada em “credo religioso”, agasalhada na Constituição Federal de 1967 (artigo 153, § 1.º) e reiterada na Emenda Constitucional n.º 1/1969 (artigo 153, § 1.º), reproduz disposição similar à da Constituição Federal de 1934, que já vedava a discriminação pautada em “crenças religiosas” (artigo 113, item 1).

Enfatizou-se que a principal diferença da Emenda Constitucional n.º 1/1969 em comparação com as Constituições Republicanas pregressas, reflexo do escancaramento do caráter autoritário do regime político então vigente, foi a previsão de censura a pronunciamentos de membros da Câmara dos Deputados e do Senado Federal (artigo 149, § 1.º, alínea b) e a publicações em geral (como jornais, livros e periódicos) em virtude, entre outros motivos, de eventual manifestação de preconceito de religião (artigo 153, § 8.º).  Frisou-se que tanto a Constituição Federal de 1967 (artigo 20, inciso III, alínea b), quanto a Emenda Constitucional n.º 1/1969 (artigo 19, inciso III, alínea b), preservaram a proibição, estabelecida, de molde expresso, pela Carta de 1946 (artigo 31, inciso V, alínea b), de “criar” (CRFB/1967) e “instituir” (EC n.º 1/1969), pela União, pelos Estados-membros, pelos Municípios e pelo Distrito Federal, impostos relativos a “templos de qualquer culto”.

Obtemperou-se que a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, ainda que reproduza dispositivos acrescentados ao Direito Constitucional Positivo e sedimentados na ordem constitucional pelas Constituições brasileiras anteriores, depura tais disposições de conceitos indeterminados vinculados à ordem e à moralidade pública e aos bons costumes: (a) Preserva a inviolabilidade da “liberdade de consciência e de crença” e assegura o livre exercício dos cultos religiosos” e a proteção, “na forma da lei”, “aos locais de culto e as suas liturgias”, inovando ao não condicionar tais direitos fundamentais a conceitos indeterminados de ordem ou moral pública, tampouco de bons costumes (artigo 5.º, inciso VI). Sob o ângulo do Direito Tributário, consignou-se que se desdobra na imunidade dos “templos de qualquer culto” (artigo 150, inciso VI, alínea b, e § 4.º, da CRFB/1988). (b) Embora excepcione a limitação a “direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política”, prevê, para tal fim excepcional de restrição a direitos, não apenas o requisito de a pessoa “as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta”, como também a exigência cumulativa de “recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei” (artigo 5.º, inciso VIII), em que se insere o “serviço alternativo aos que, em tempos de paz, após alistados, alegarem imperativo de consciência”, inclusive se “decorrente de crença religiosa” (além das hipóteses “de convicção filosófica ou política”) (artigo 143, § 1.º). (c) Mantém, nos termos da lei, “a prestação de assistência religiosa nas entidades civis e militares de internação coletiva” (artigo 5.º, inciso VII). (d) Permanece a vedação de que os entes estatais estabeleçam ou subvencionem “cultos religiosos ou igrejas”, embaraçem-lhes o funcionamento ou cultivem “com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança”, com a reintroduzida ressalva genérica da “colaboração de interesse público”, na forma da lei (artigo 19, inciso I). (e) Continua a previsão constitucional de que, em educandários estatais, o ensino religioso possui caráter facultativo e se ministra como disciplina inserta “em horários normais das escolas públicas de ensino fundamental” (artigo 210, § 1.º), bem como de que o “casamento religioso tem efeito civil, nos termos da lei” (artigo 226, § 2.º).

In: FROTA, H. A. da. A liberdade de religião nas Constituições brasileiras de 1824 a 1988. Revista Jurídica Unigran, Dourados (MS), v. 24, n. 47, jan.-jun. 2022, p. 144-150.

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Como citar a referência bibliográfica: FROTA, Hidemberg Alves da. A liberdade de religião nas Constituições brasileiras de 1824 a 1988. Revista Jurídica Unigran, Dourados (MS), v. 24, n. 47, p. 129-152, jan.-jun. 2022.