quinta-feira, 30 de dezembro de 2021

A interpretação gramatical do art. 156, § 2.º, inciso I, da CF/88 (imunidade do ITBI): nesses, nestes ou aqueles?

 “[…] 3.2 A interpretação gramatical do art. 156, § 2.º, inciso I, da CF/88

Na óptica de Kiyoshi Harada, a 1.ª parte do inciso I do § 2.º do art. 156 da CF/88 “refere-se à imunidade autoaplicável” ou incondicionada, enquanto que a 2.ª parte do mesmo inciso “corresponde à imunidade condicionada”, levando em conta que, nesta segunda hipótese, “para a sua fruição o adquirente não poderá ter como atividade preponderante a compra e venda desses bens ou direitos, locação de bens imóveis ou arrendamento mercantil” (HARADA, 2011, p. 90).

Similar conclusão elabora Guilherme Traple:

Após o fragmento de texto transcrito, temos uma vírgula e então o vocábulo “nem”. “Nem” é uma conjunção aditiva, a união da conjunção aditiva “e”, que exprime uma ideia de soma, com o advérbio de negação “não”. Portanto, gramaticalmente, não haverá alteração no sentido de substituirmos “nem” por “e não”.

Ou seja, o vocábulo “nem” divide o dispositivo legal, criando situações distintas.

Destacou-se também o termo “nesses casos”. “Nesses” é a contração da preposição “em”, sendo que as preposições exprimem a ideia de lugar, e do pronome demonstrativo “esse”, em sua forma plural, “esses”.

O termo “esses” é utilizado, no português culto, para retomar uma ideia já mencionada – é uma anáfora – está, necessariamente, ligada aos termos que o antecedem. Então, o vocábulo “nesses casos”, contido no texto legal limita o alcance do que da exceção que o sucede aos casos que o antecedem.

Retoma-se então o texto legal: e não incide “sobre a transmissão de bens ou direitos decorrente de fusão, incorporação, cisão ou extinção de pessoa jurídica, salvo se, nesses casos, a atividade preponderante do adquirente for a compra e venda desses bens ou direitos, locação de bens imóveis ou arrendamento mercantil”.

Como se pode ver, os casos que estão depois da conjunção aditiva “nem”, que, conforme dito anteriormente, separa o texto em duas hipóteses, e antecedem o vocábulo “nesses casos” são os casos de fusão, incorporação, cisão ou extinção de pessoa jurídica, desta forma, a exceção à imunidade somente é aplicável nesses casos.

Assim, o ITBI não incide: (a) sobre a transmissão de bens ou direitos incorporados ao patrimônio de pessoa jurídica em realização de capital; e (b) sobre a transmissão de bens ou direitos decorrente de fusão, incorporação, cisão ou extinção de pessoa jurídica, salvo se, nos casos de fusão, incorporação, cisão ou extinção de pessoa jurídica, a atividade preponderante do adquirente for a compra e venda desses bens ou direitos, locação de bens imóveis ou arrendamento mercantil.

Portanto, pela simples leitura do inciso I do parágrafo 2º do artigo 156 da CFRB/1988, pode-se concluir que a transmissão de bens ou direitos reais sobre bens imóveis à pessoa jurídica em realização de capital é absolutamente imune à cobrança [de] ITBI, não havendo qualquer exceção. (TRAPLE, 2012, p. 88-89).

Mencione-se, ainda, o posicionamento pessoal de Irineu Mariani (que, na atualidade, conforme anotado em nota de rodapé pretérita, curva-se, como Desembargador do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, à corrente doutrinário-jurisprudencial majoritária, pela sujeição da realização de capital societário ao critério da preponderância):

Quisesse o inciso I do § 2º do art 156 se referir a todas as hipóteses nele mencionadas, inclusive a realização de capital social, não teria usado a expressão nesses casos após mencionar as hipóteses de fusão, incorporação, cisão ou extinção de pessoa jurídica, explicitando que apenas nesses casos — entenda-se, casos de fusão, incorporação, cisão ou extinção — é que se considera a atividade preponderante. […] (RIO GRANDE DO SUL, 2017p, grifo do autor em negrito substituído por grifo em itálico)

Em sentido diverso se manifesta Roque Antonio Carrazza, para o qual as imunidades tanto da 1.ª parte quanto da 2.ª parte do inciso I do § 2.º do art. 156 da CF/88 “caem por terra se a atividade preponderante do adquirente for a compra e venda desses bens ou direitos, a locação de bens imóveis ou o arrendamento mercantil (leasing imobiliário)” (CARRAZZA, 1996, p. 97-98, grifo do autor).

Carlos Eduardo Makoul Gasperin também subordina a imunidade quanto à realização de capital ao critério da preponderância:

Na parte final do dispositivo percebe-se que o constituinte determinou uma exceção à regra da imunidade e, por consequência, uma autorização à tributação que pode assim ser traduzida: “poderá haver a tributação pelo ITBI se os bens transmitidos em razão de integralização[1]realização de capital, cisão, fusão, incorporação, extinção destinarem-se a pessoas jurídicas cujas atividades preponderantes estejam ligadas ao ramo imobiliário”. (GASPERIN, 2014, p. 745, grifo nosso)

No campo da Gramática Normativa, Domingos Paschoal Cegalla esclarece que o pronome demonstrativo esse e essa “realçam o termo a que se referem, anteriormente expresso” (CEGALLA, 2008, p. 163).

Nesse sentido, Miriam Margarida Grisolia e Renata Carone Sborgia explicam que os pronomes demonstrativos esseessaessesessas e isso “indicam algo que já foi dito anteriormente” (GRISOLIA; SBORGIA, 2007, p. 123).

Colaciona-se, nessa vereda, o magistério José Maria da Costa, ao aduzir que, “no interior da frase, istoeste e esta se referem ao que se vai dizer, enquanto issoesse e essa se relacionam ao que já se disse” (COSTA, 2013, p. 604, grifo do autor).

Já os pronomes também demonstrativos aqueles e estes, ainda de acordo com Cegalla, servem para distinguir entre o que foi mencionado em primeiro lugar (aqueles) e o que foi citado por último (estes): “Quando estes pronomes ocorrem na mesma frase, este refere-se ao subst. mais próximo e aquele, ao mais afastado […]” (CEGALLA, 2008, p. 164, grifo do autor).

Em outros termos, afirma José Maria da Costa que, “no interior da frase, este se refere ao elemento anterior mais próximo; aquele, ao mais distante.” (COSTA, 2013, p. 604, grifo do autor)

Idêntica ensinança se extrai da obra de Celso Cunha e Lindley Cintra: “Quando queremos aludir, discriminadamente, a termos já mencionados, servimo-nos do demonstrativo aquele para o referido em primeiro lugar, e do demonstrativo este para o que foi nomeado por último.” (CUNHA; CINTRA, 2007, p. 334, grifo dos autores)

Tal ensinamento igualmente abraçam Grisolia e Sborgia: “Para retomar dois elementos anteriormente citados no texto, usa-se este para o elemento citado por último e aquele para o elemento citado primeiro.” (GRISOLIA; SBORGIA, 2007, p. 123, grifo das autoras com sublinhado substituído por itálico).

Sintetiza Jaci Santos de Souza, ao ensinar que este(a) isto concernem “ao elemento mais próximo”, ao passo que aquele(a) e aquilo relacionam-se “ao elemento mais distante” (SOUZA, 2016, p. 47, grifo do autor).

Portanto, a expressão “nesses casos”, entalhada no inciso I do § 2.º do art. 156 da CF/88, refere-se a todos os casos anteriormente explicitados naquele inciso, sem diferenciá-los entre estes e aqueles, isto é, sem distinguir entre os casos da sua 1.ª parte (“transmissão de bens ou direitos incorporados ao patrimônio de pessoa jurídica em realização de capital”) e da sua 2.ª parte (“transmissão de bens ou direitos decorrente de fusão, incorporação, cisão ou extinção de pessoa jurídica”) (BRASIL, 2017d).

Se houvesse o intento do legislador constitucional de firmar contraste entre a 1.ª e a 2.ª partes do inciso I do § 2.º do art. 156 da CF/88, a fim de excluir o critério da preponderância no tocante às hipóteses de realização de capital e restringi-lo às hipóteses de fusão, incorporação, cisão ou extinção de pessoa jurídica, teria consignado “salvo se, nestes casos [e não nesses casos], a atividade preponderante do adquirente for a compra e venda destes [e não desses] bens ou direitos, locação de bens imóveis ou arrendamento mercantil”.

Por tais motivos, assiste razão ao voto condutor pronunciado pelo Desembargador-Relator Almir Porto da Rocha Filho, em 12 de abril de 2017, nos autos da Apelação Cível e Reexame Necessário n.º 70072970874, na 21.ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, ao frisar que a “expressão ‘nesses casos’, entre vírgulas, contempla as duas situações previstas no inciso” em referência (RIO GRANDE DO SUL, 2017s, grifo do autor em negrito substituído por grifo nosso em itálico). […]”


[1] Em realidade, na contextura da norma imunizante em comento, mostra-se despiciendo invocar, como categoria autônoma, a integralização de capital, porque a expressão “realização de capital”, empregada pelo legislador constituinte, diz respeito à integralização de capital, conforme alumia Herbert Morgenstern Kugler, citado em passagem pretérita deste estudo (KUGLER, 2011, p. 210).

Leia o artigo completo: A incidência de ITBI em relação a pessoas jurídicas inativas, à luz dos critérios da preponderância imobiliária e da finalidade constitucional.

Como citar a referência bibliográfica: FROTA, Hidemberg Alves da. A incidência de ITBI em relação a pessoas jurídicas inativas, à luz dos critérios da preponderância imobiliária e da finalidade constitucional. Âmbito Jurídico, Rio Grande, v. 20, n. 167, dez. 2017. Também publicado em Revista Síntese Direito Imobiliário, São Paulo, v. 8, n. 48, p. 97-135, nov.-dez. 2018.

segunda-feira, 6 de dezembro de 2021

A imunidade tributária dos templos rosa-cruzes da AMORC

"[...] Examinando-se a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, constatou-se que o STF amplia o conceito de templo, para além do local físico da prática do culto, quando se trata de instituições religiosas, e, ao mesmo tempo, nas circunstâncias pertinentes a templos iniciáticos (maçonaria e rosa-cruz), afunila a amplitude tributário-constitucional do vocábulo, por entender que, embora o poder constituinte originário tenha se referido a cultos de maneira genérica, o legislador constitucional quis se reportar tão só aos templos de cariz assumidamente religioso.

Por outro lado, percebeu-se que o aspecto central da imunidade tributária dos “templos de qualquer culto” radicada no artigo 150, inciso VI, alínea b, e § 4.º, da CFRB, não deve ser o culto a uma religião, e sim o culto do ser humano a Deus ou a entes análogos de cunho transcendental e extrafísico (divindades, forças cósmicas ou elementos da natureza), por meio de uma instituição religiosa ou não, que tenha nisso a sua finalidade essencial e assim proceda destituída de fins lucrativos.

Inferiu-se que, conquanto a AMORC e demais ordens rosa-cruzes e outras sociedades iniciáticas, de caráter hermético e/ou secreto, precederam aos movimentos da Nova Era emergidos na segunda metade do século XX em diante, porém passaram a ser enquadradas, pelas Ciências da Religião, nesse mosaico de grupos, instituições e movimentos da New Age, devido às similitudes holísticas e interesses convergentes a título de uma senda de espiritualização para além do formato religioso tradicional.

Constatou-se que os templos rosa-cruzes da AMORC contemplam os quatro requisitos basilares de “templos de qualquer culto” a ensejarem, segundo Carrazza, a salvaguarda da imunidade tributária em comento, ou seja, (a) os adeptos da AMORC compartilham da crença na divindade, (b) a AMORC possui contingente significativo de adeptos, de abrangência mundial, e, em sua doutrina, divulgada por meio de monografias, revistas e outras publicações, constam procedimentos específicos para o culto a Deus, por meio de meditações individuais ou coletivas e cerimônias coletivas de cariz iniciático, (c) a AMORC, nos países que contam com os seus templos iniciáticos, compõe-se de uma estrutura organizacional formalizada no mundo jurídico, constituída pelos chamados “organismos afiliados” (além das lojas e capítulos, pronaoi e heptadas martinistas) e quadro dirigente próprio (encabeçado pelo Imperator e pelos Grãos-Mestres), e, além disso, (d) a AMORC é uma organização internacional dotada de estabilidade e do ânimo de perenidade. [...]"

Leia o artigo completo: A imunidade dos templos rosa-ruzes da AMORC.

Como citar a referência bibliográfica: FROTA, Hidemberg Alves da. A imunidade  dos templos rosa-cruzes da AMORC. Revista Leopoldianum, Santos, v. 47, n. 133, p. 29-52, out.-dez. 2021. Disponível em: https://periodicos.unisantos.br/leopoldianum/issue/view/116/66. Acesso em: 6 nov. 2021.